Thiago Beranger’s review published on Letterboxd:
Certa vez em uma aula sobre cinema, um professor que admiro falou algo interessante sobre o melodrama. Não vou lembrar exatamente quais foram as palavras que ele usou, mas o sentido era algo como: o melodrama é um gênero que tem como característica o uso da artifícios simples para extrair das situações a complexidade das emoções. Essa dicotomia ficou na minha cabeça. A simplicidade que vem da frontalidade com a qual esse gênero tão difamado encara seus dramas, através de uma forma que grita de várias maneiras onde quer chegar. A complexidade que brota de como esses sentimentos acabam batendo nos personagens e no espectador.
“A Baleia” de Aronofsky teve esse efeito em mim. Li algumas manchetes que classificaram o filme como piegas, caricato e até uma que atribuiu ao protagonista o adjetivo “patético”. Consigo enxergar de onde vem isso, mas de forma alguma posso concordar.
Aronofsky talvez construa aqui seu trabalho mais frontalmente melodramático. A utilização de uma característica física tão exacerbada quanto a obesidade do protagonista com certeza joga o filme para um lugar apelativo. Mas através dessa apelação, o que o diretor consegue extrair da sua obra e do seu protagonista? No meu caso foi um processo sincero de identificação.
Assim como Charlie eu tenho uma doença, menos grave e aparente, mas também séria. Não vem ao caso o que é. Basta dizer que se eu não me cuidar, em algum tempo isso pode se tornar um grande problema. Depois de um tempo de tratamento consegui que os sintomas regredissem a um estado menos agressivo. Mas há meses tenho negligenciado os cuidados necessários, que passam bastante pela questão da alimentação. As vezes sinto que uma parte de mim quer que a doença volte ao seu estado mais agressivo. Por quê? Qual é a raiz dos nossos vícios e obsessões?
Acho que essa última pergunta é algo que transborda a minha vida e toca em um ponto que faz parte da natureza da experiência humana. E pra mim é essa pergunta que permeia toda a obra de Aronofsky. Seus filmes nunca são inofensivos porque lidam com questões complexas, às vezes de maneira irresponsável. Mas enxergo que essa busca norteia o cinema do autor muito mais do que os apelos que ele utiliza pra tentar provocá-la. Ao contrário do que muita gente pensa, esses apelos para Aronofsky são meios e não fins em si mesmos.
Voltando para as manchetes que descrevem “A Baleia” como uma experiência pobre, ou que sustentam que há um olhar de desumanização a partir da obesidade de Charlie (Brendan Fraser). Há personagem mais complexo e humano do que esse? Obviamente a maquiagem e a própria interpretação expressiva do ator beiram o caricatural. Mas se extrai daí tanta complexidade, que acho muito cruel definir o filme por essa camada mais epidérmica.
Há no personagem a síntese do conflito entre pulsões de morte e vida. A insatisfação de Charlie com sua condição e com a perda do seu grande amor entra em embate com os sentimentos positivos que advém de suas relações com a filha - o que fica claro no momento em que a simples leitura do texto da menina serve como um paliativo - e das outras pessoas que o cercam. O personagem reconhece que chegou a um ponto onde sua própria morte física é inevitável, mas resolve em seus últimos dias alimentar a vida.
A redenção aí não vem exatamente de uma resolução factual dos conflitos apresentados, e sim de um reencontro interno do personagem com um sentido positivo. No final das contas o mundo está mesmo acabando. O apocalipse anunciado pelo rapaz que bate à porta do protagonista de fato acontece, mas não da maneira que o garoto imagina e que, em sua imaturidade, propaga ao bater de porta em porta. O fim do mundo é algo estritamente pessoal, pra cada um de nós.
A salvação não está em um arrependimento externalizado assim como não está na morte - que caso quisesse, Aronofsky poderia ter ilustrado de maneira literal. A salvação aparece como o simples abrir de uma porta, como um céu azul que destoa do verde tóxico que predomina na fotografia e no design de produção do filme. Está no reconhecer, mesmo diante de todo o peso, a capacidade de flutuar.
Há beleza na frontalidade com a qual Aronofsky conduz e resolve o seu filme. Desde “Fonte da Vida” - seu filme que mais me toca - eu não lembro de ver o diretor se dar ao direito de abrir aquela porta no final pra nos deixar escapar de toda a densidade que os seus temas e suas escolhas formais provocam.