Not Paulo Emílio’s review published on Letterboxd:
NOTA: Comecei o Substack Teoria Brasileira do Cinema, onde vou publicar não só tudo que sair aqui, mas ainda textos de outros autores essenciais. O objetivo é fazer um grande acervo de obras clássicas sobre cinema escritas por cineastas e pensadores brasileiros.
O texto abaixo também poder ser lido AQUI.
---
A seleção dos meninos não obedeceu a nenhuma preocupação de estilização, num plano realista eles são representativos da média dos meninos de um colégio pobre do interior. São, no mais das vezes, magros, nem bonitos nem feios, e até sujos. Mas são meninos, como todos os meninos do mundo. Os dois adultos do povo, a cozinheira e o garçom do café que enxuga os copos para a festa, são, de modo igualmente realista, qualquer boa mulher ou qualquer sujeito forte. O inspetor Huguet não é um adulto de verdade, sua solidariedade com os meninos é absoluta.
Com as outras personagens, somos transportados para o universo dos fantoches, a começar pelas três expressões da autoridade dentro do colégio: o diretor, o inspetor-chefe Santt, vulgo Bec-de-Gaz, e o inspetor Parrain, vulgo Pète-Sec. O grotesco dos três está na razão direta da sua importância: sua aparição no filme se dá na ordem inversa. Em primeiro lugar, temos Pète-Sec que, na estação, espera os meninos que chegam das férias. De início, ele é sobretudo antipático, congelado na sua importância. A Caussat, que o aponta para ele, diz Bruel, chateado: "Este ano também não vai ser brincadeira...". "Ah, você acha?", responde Caussat. E ele está certo em duvidar, já que Pète-Sec vai acabar, crucificado em sua cama, sendo aniquilado como os outros.
Em seguida, conhecemos o inspetor-chefe. Desde a sua primeira aparição, Bec-de-Gaz já será ridículo. Só posteriormente o aspecto detestável lhe será acrescentado, até se chegar a uma personagem suspeita que espiona os meninos, rouba seu chocolate e nunca diz uma palavra sequer.
O diretor, ao contrário — estamos em condição de saber —, fala bastante . Situado no topo da hierarquia da escola, concentra todos os ridículos dos seus subordinados e supera a todos com seus ares de homem impecável, de chefe e anão.
Assim como fez em relação aos meninos, Vigo, para criar suas personagens, tomou a realidade como ponto de partida e, para bem situá-las no universo dos adultos, não hesitou em acentuar suas feições até o limite da caricatura. No entanto, para satisfazer as últimas intenções de Vigo, povoar esse universo apenas com membros da hierarquia escolar não era suficiente. Ele apelou para os representantes de autoridades muito superiores às do colégio: o padre e o chefe da policia. Essa gente toda logo estará em seu devido lugar no primeiro plano, na frente de outros bonecos, os de uma barraca de pimpampum. Bombeiros, tão ridículos quanto eles, irão se exibir. São pessoas do povo, que o uniforme empurra para o mundo dos fantoches. Lembramos que a vaga silhueta do funcionário da estação, mal vislumbrada no início do filme, ainda achava tempo, em sua fugacidade, para não ser simpática: não é um desastre, para os ferroviários, eles usarem uniforme? Numa sequência do projeto inicial, que Vigo não manteve, durante um jogo de futebol as crianças esmurravam e ridicularizavam uns soldados enormes.
A lógica sentimental de Vigo é quase sempre impiedosa na criação desses dois mundos. Ele ainda tinha à mão um adulto, este sem uniforme: o tutor de Caussat, pai da menina com quem brinca o garoto nos seus raros dias fora da escola. No roteiro, ele tivera um momento de fraqueza e indicara que "sob o olhar indulgente do tutor, Caussat brinca em um canto da sala de jantar, onde tudo é antigo, com uma menina adorável — a filha do tutor". Como! Um adulto simpático numa sala de jantar rococó? Impossível! E Vigo se corrige, ocultando o rosto do tutor atrás do jornal. Ele só emergiria durante o relato de Caussat, mas a sequência não aconteceu e ele ficou oculto para todo o sempre.
Vigo, no entanto, abre uma exceção para dois adultos burgueses, duas mulheres. A primeira é a mãe de Tabard, que encontramos na estação. De início só vemos sua silhueta. E quando estamos para ver seu rosto, ele é tapado por um gesto do inspetor. Vigo mal assinalou a mãe, quase a ignorou, mas não quis se colocar contra ela e situá-la no mundo dos fantoches. Além disso, tratava-se da mãe de Tabard, e sabemos que Tabard tinha muito do próprio Vigo. Percebemos assim o caminho trilhado por Vigo no terreno afetivo desde À propos de Nice. Do carnaval grotesco particularmente fervilhante de mulheres, ele passa à ausência de mulheres no mundo dos fantoches de Zéro de conduite. Conseguira superar, em parte, sua crise de filho inimigo, e quando autoriza à sua mãe dizer ao inspetor: "Com licença, senhor, René Tabard só virá para a escola amanhã de manhã. Esta noite, ele está com o coração apertado...' , sentimos que ele perdoou sua mãe.
Através do amor é que Vigo conquistou esse equilíbrio. E justamente, a outra mulher, que é gentilmente seguida, durante o passeio, pelo bedel Huguet e pelos alunos até a esquina de uma rua, substituída por um padre preocupado, não poderia ser mais simpática, pois expressa uma possibilidade de amor.
O tutor sumido atrás do jornal, o vigilante passando pelo dormitório, sempre indiferente, quer reine a tranquilidade, quer a baderna, e a vaga silhueta da mãe abandonada na estação, ficam deslocados entre dois mundos, ao passo que Vigo autoriza a senhora do passeio a entrar no mundo humano das crianças, do bedel Huguet, da cozinheira e do garçom do café.
Essa divisão em dois mundos e a conclusão do filme nos fornecem todos os elementos da ideologia de Vigo e das intenções sociais de Zéro de conduite. A escola de Zéro de conduite, para além da escola real surgida das recordações de infância de Vigo, é a sociedade tal como Vigo adulto a enxerga. A divisão entre crianças e adultos dentro da escola corresponde à divisão da sociedade em classes: uma minoria forte que impõe sua vontade a uma maioria fraca. A associação entre as crianças e seu cúmplice Huguet, de um lado, e as pessoas do povo, a cozinheira e o garçom do café, de outro, não se dá através da ação — o que seria artificial — e sim, pelo mesmo estilo realista com que são apresentados, em oposição à acentuada estilização dos adultos representantes da autoridade. A escolha das vitimas para o pimpampum — a lgreja, o Estado, o uniforme, nos mostra um Vigo às Voltas com os temas tradicionais da anarquia. Do mesmo modo, a conclusão (partida dos quatro amotinados rumo à liberdade) expressa o sentimento anarquista do final do século XIX, que levou tantos militantes, depois de atacar um bocado a sociedade, a partir, quer individualmente atrás da liberdade na Argentina ou outro lugar, quer coletivamente em busca da liberdade à margem da sociedade, mediante a edificação de "meios livres" ou falanstérios. A ideologia de Zéro de conduite consiste na fidelidade de Vigo a sentimentos políticos de outra era, que eram para ele, porém, muito próximos.
Os diálogos de Zéro de conduite receberam pouquíssima atenção dos críticos e nunca despertaram o interesse dos historiadores do cinema, talvez por haver poucas falas, ou pela má qualidade do som. Se, por um lado, ao compor o diálogo à medida que ia filmando, Vigo era às vezes obrigado a trabalhar às pressas, por outro, tinha a seu favor o fato de poder criar frases para personagens já encarnadas diante dos seus olhos. Libertou-se assim do desvio literário que sempre acomete o diálogo cinematográfico francês, e conseguiu encontrar inflexões humildes e eficazes para as réplicas dos garotos, assim como uma ironia sem excessos para os discursos do diretor.
A propósito dos diálogos, as preocupações dos produtores se afinavam com as preferências do diretor. O número limitado de réplicas reduzia os custos e Vigo, por sua vez, preferia o cinema mudo e desconfiava totalmente do "cem por cento falado" dos cartazes publicitários da época. Zéro de conduite é muito sóbrio em palavras: são pronunciadas pouco mais de mil.
Também na escolha das réplicas, Vigo está imbuído das lembranças da vida de seu pai. Em 1930, saíra um livro de memórias de Victor Méric, o antigo colaborador de Miguel Almereyda em La Guerre Sociale. O autor relata em que circunstâncias Almereyda tinha publicado, nesse jornal, uma manchete endereçada ao governo, impressa com todas as letras em tipos garrafais: "Ora, vão à merda!". Vigo quis colocar a mesma frase na boca de Tabard, primeiro dirigida ao professor gordo, depois ao diretor, a título de prefácio para o desencadeamento da revolta dos meninos.
Para contornar as dificuldades geradas pela má qualidade do
som e pela dicção defeituosa dos seus atores, principalmente dos meninos, Vigo experimentou método de repetições (Caussat com seus "vidros de cola", os três meninos em volta da cabine do inspetor, falando de "dor de barriga" ou "pode sair"). O resultado, embora não sensacional, era bom; o método, sobretudo, descortinava grandes possibilidades. Vamos lembrar dele quando da criação, por Vigo, da personagem do Père Jules, interpretado por Michel Simon em L'Atalante.
Outra qualidade ignorada em Zéro de conduite reside nos movimentos da câmera. Vigo tinha de se contentar, na maior parte do tempo, em mover a câmera em torno do próprio eixo. Vimos o que ele foi capaz de fazer desse modo, sobretudo no final da sequência dos três meninos em volta da cama de Pète-Sec, quando desloca o campo de modo competente e discreto a fim de acompanhar dois dos meninos até suas camas e esperar, também na sua cama, pelo terceiro. Quando tem oportunidade de recorrer ao travelling, Vigo faz pouco das convenções e dá mostras de sua maestria, como por exemplo no discurso do diretor na sequência das desculpas na sala de estudo.
Quando se fala, em relação a Vigo, num modo "competente" de mover a câmera em torno do seu eixo, ou de "maestria" em matéria de travelling, é preciso acrescentar que de modo algum se trata de uma eficiência técnica qualquer. O seu olhar, sua inspiração é que é certeira e abre caminho. Se, tal como os poetas, chega a cometer "gafes", no mais das vezes ele as impõe.
Não podemos achar, contudo, que os defeitos de Zéro de conduite não têm importância. O pensamento de Vigo nem sempre é nitidamente expresso em Zéro de conduite, que afinal é inacabado e cuja ação não raro carece de clareza. No entanto, era desejo de Vigo que, no filme, os fatos fossem narrados com ordem e precisão. Ao escrever o roteiro, ele observava que "ao longo do filme, assistimos ao complô estreitamente mesclado à vida cotidiana do colégio e que se desenvolve num crescendo, em paralelo à preparação da festa e ao pequeno escândalo que irá irromper entre o quarto menino (Tabard) e a direção".
No filme tal como o conhecemos, estamos distantes de qualquer preocupação com um ritmo crescendo ou mesmo com uma simples, porém boa, articulação. O estilo de Vigo exige que se saiba ver entre as imagens. Mas temos de constatar que os conflitos de Vigo ante as exigências dos produtores, relativos à metragem, trouxeram ao filme esse aspecto fragmentado que não raro desconcerta o espectador. Há que observar, além disso, que o Zéro de conduite a que assistimos hoje se encontra, em alguns trechos, ainda mais incompleto do que a versão original de 1933. Não só faltam alguns planos como pelo menos uma sequência completa aparentemente desapareceu: a de Caussat no refeitório, quando ele representa suas aventuras por meio de mímicas.
A soma dos defeitos de Zéro de conduite deveria teoricamente levar a um resultado pavoroso. As críticas feitas à montagem por alguns colaboradores de Vigo, antes da sonorização, são quase todas válidas: falta de clareza, quase de ação, sínteses demasiado sucintas, falta de ritmo, ausência de decupagem, interpretação ruim. Depois da sonorização, novos defeitos surgiram. Para começar, o som era muito ruim. Além disso, Vigo cometeu inacreditáveis deslizes: muitas vezes, não sabemos quem está falando.
Quando refletimos que o resultado final é um filme cujo frescor não parou de crescer nos últimos vinte anos, poderíamos falar em milagre, se já não soubéssemos que ele se deve à autenticidade fundamental do roteiro, respeitada durante as filmagens por um Vigo sujeito ao controle de suas mais íntimas recordações; e à unidade profunda, obtida na montagem mediante o sacrificio da clareza ao estilo, sem esquecer do apoio da música de Jaubert.
---
Excerto de 'Jean Vigo' (São Paulo: Cosac Naify, 2009; p. 186-192.)