Not Paulo Emílio’s review published on Letterboxd:
NOTA: Transcrevi este texto do Paulo Emílio como parte de uma colaboração com o pessoal que está realizando o curso online Constelações do Cinema Brasileiro (1898-1992) (no link, o programa completo e as informações de inscrição). Fiquei sabendo desse curso por uma feliz coincidência aqui no LB e vi que os ministrantes estão resgatando muito material bom e pouco conhecido da história do cinema brasileiro. Quem fizer o curso vai com certeza entrar em contato com coisa muito rara e preciosa. Por isso, estou ajudando o pessoal envolvido a prospectar e transcrever alguns textos mais difícieis de achar. Publicarei mais material para este curso em breve.
Mas vamos ao texto, mais uma verdadeira pérola do Paulo Emílo!
Humberto Mauro em 1930
(Excerto)
Se eu conseguisse delinear o homem de 33 anos que no primeiro semestre de 1930 filmava Lábios sem Beijos no Rio, terei encontrado uma conclusão válida para este levantamento da contribuição da cidade de Cataguases e da revista Cinearte para a formação de Humberto Mauro. Formação, aliás, que nesta altura ainda se encontra longe do término. Depois de Cypriano Teixeira Mendes, Pedro Comello e Adhemar Gonzaga, ainda falta ao discípulo, cujos cabelos começam a branquejar, o encontro com o quarto e último mestre: Roquette Pinto. O encontro só se produzirá daí a alguns anos e terá, como o anterior (com Adhemar Gonzaga), uma face positiva e outra negativa. Quando est última – que assumiu notadamente a forma de respeito pedante pela cultura oficial – for superada é que Humberto Mauro chegará à sua tardia e luminosa maturidade alcançada. Tudo nos leva a crer que o traço principal da plenitude alcançada será a volta ao tempo de O Thesouro Perdido (de 1927) e não me parece provável que o aprofundamento da pesquisa venha a perturbar o círculo harmonioso que vislumbro. Essa hipótese, em todo caso, nos ajudará a ordenar os dados de que dispomos a respeito de Humberto Mauro alguns meses depois de ter ele completado sua obra cataguasense.
Depois que em 1926 Humberto Mauro apresentou [seu primeiro filme] Na Primavera da Vida para Adhemar Gonzaga, esforçou-se para seguir à risca as lições da escola de Cinearte. No filme seguinte ele já se preocupa em atenuar a pobreza de Na Primavera da Vida que desagradara ao novo mestre, introduzindo tomadas de um sítio moderno e confortável nos arredores de Belo Horizonte. De uma maneira geral, no entanto, a realização de O Thesouro Perdido permitiu conciliar a fidelidade a si próprio e as lições aprendidas com os amigos de Cinearte. Naquele momento, Adhemar Gonzaga e Pedro Lima ainda faziam do “aspecto característico” o centro de suas preocupações estéticas que coincidiam com a tendência de Humberto em adaptar ao mundo da Mata os modelos de filmes rurais norte-americanos. Em seguida, de mês para mês e de ano para ano, os dois jornalistas cariocas – particularmente Adhemar Gonzaga – e inclinaram cada vez mais para os modelos norte-americanos, de natureza mais luxuosa e requintada, procurando trazer para a nova linha o discípulo complacente. Na Primavera da Vida, O Thesouro Perdido, Braza Dormida (1928) e Sangue Mineiro (1929) traçam a curva dessa influência através dos mais variados enfoques. Foi notado, por exemplo, a presença em todos eles de uma personagem do repertório dramático, o pai nobre, cuja posição social cresce de filme para filme. Um modesto vigia fiscal vira sitiante abastado que se transforma em usineiro burguês para ser metamorfosear finalmente em aristocrata industrial. As casas modestas de Na Primavera da Vida se prolongam em O Thesouro Perdido onde já aponta a sede de uma chácara luxuosa e as residências citadina e rural de Braza Dormida se eclipsam para dar lugar ao solar suntuoso de Sangue Mineiro. […] As cenas de trabalho burocrático, artesanal, industrial ou criminoso, que percorrem as três primeiras fitas, desaparecem completamente da última e o mesmo acontece com o povo. Ele está presente em Na Primavera da Vida e em O Thesouro Perdido e Braza Dormida, é verdade que frequentemente relegado ao gueto dos botecos sinistros. Em Sangue Mineiro procede-se a ablação do povo. Os jardins bem cuidados não possuem jardineiros e não se veem empregados no rico solar. A aparição fortuita dos dois criados da velha tia não perturba a homogeneidade social da humanidade da fita. A sofisticação psicológica acabou impondo o desaparecimento do vilão e a profunda alteração da natureza dos heróis. Em Na Primavera da Vida em O Thesouro Perdido estes eram talhados num bloco ao passo que o herói de Braza Dormida recebe uma dose de aparente mau caráter. O antagonismo com um vilão total facilita vinda à tona das virtudes do mocinho. Em Sangue Mineiro não há vilão, a impregnação de mau caráter no herói é aprofundade e sua recuperação fica na dependência da dialética entre o desejo e o amor. Chegamos assim as heroínas cuja castidade nas duas primeiras fitas é absoluta. Em Na Primavera da Vida O Thesouro Perdido, como na juventude de Humberto, a separação entre amor e desejo é radical, o primeiro reservado ao par central e o segundo relegado aos vilões. Em seguida as coisas se tornam mais complexas. O vilão em Braza Dormida não revela desejos propriamente sensuais a não ser que estes se manifestem no sadismo em relação a um subordinado. O galã deseja francamente a mocinha e esta se deixa beijar inclusive de peignoir. Em Sangue Mineiro a sensualidade se descontrai, assume eventualmente um aspecto brutal, e é constantemente a apimentada pelo voaieirismo. A única personagem do universo mauriano que não se altera é a do desgracioso, do mal amado, do infeliz, mesmo quando também é ele é imposto um traje de rigor.
Em suma, de fita para fita, Humberto Mauro se moderniza de acordo com a orientação da escola de Cinearte que coincidia, às vezes, com alguns de seus impulsos mais profundos, notadamente na expressão da sensualidade. Como linguagem e técnica – de acordo com as normas em vigor durante os últimos anos do cinema mudo – a evolução de um filme para o outro é precisa, rápida, surpreendente.
[…]
Tudo indicaria, portanto, que o progresso de Humberto Mauro durante as quatro longas-metragens cataguasenses foi incessante e a descrição metódica de cada uma das fitas feitas nos capítulos anteriores nos leva a essa conclusão. Ao mesmo tempo, esse quadro lógico é arrasado por algumas evidências difíceis de serem pormenorizadas a contento, mas que a sensibilidade impõe. Neste ponto da reflexão afasto – contrariado – Na Primavera da Vida para só cuidar dos filmes que existem. O progresso evidente que se manifesta de O Thesouro Perdido até Sangue Mineiro é acompanhado de um empobrecimento igualmente evidente. A primeira fita possui uma agilidade e, sobretudo um frescor, que diminuem consideravelmente em Sangue Mineiro. Tudo se passa como se a seiva que animava o primeiro filme se esvaísse na segunda até desaparecer completamente no terceiro. Essa seiva seria construída pelos dados do mundo humilde de Humberto e que pulsam através de todo O Thesouro Perdido, insinuam-se ainda sub-repticiamente em Braza Dormida, mas que não têm vez em Sangue Mineiro. A fórmula para definir e resumir o fenômeno é dizer que no conflito que se manifestou dentro de Humberto Mauro entre Cataguases e Cinearte, esta tinha levado a melhor.
[…]
Na pequena corte que se criava em torno de Adhemar Gonzaga na Cinédia poder-se-ia ter a impressão de que Humberto Mauro adquirira uma fisionomia indefinida. Mas basta olhar para uma das inúmeras fotografias do grupo que Cinearte publicará repetidamente para reconhecer nele alguém habitado por um outro mundo.
(Excertos de Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte, livro de Paulo Emílio originalmente publicado em 1974).
Este excerto também está disponível neste link.