Os Mansos

Os Mansos

A estreia de Os mansos, sábado, no Olido, correu como seria de se desejar. Na primeira sessão da tarde a sala estava bastante cheia e na segunda repleta. Acho que ninguém se retirou. Grupos maiores ou menores riam com alguma frequência e pelo menos duas vezes houve aquela gargalhada unânime, avassaladora, contagiante. É claro que não vou contar as passagens, seria diminuir o divertimento dos futuros espectadores.

Os mansos possui muito do que é preciso para fazer um filme que funcione bem. A fotografia de Hélio Silva é como sempre boa, a qualidade do som razoável, as moças bonitas, os atores eficazes, o repertório de situações pertence a um gênero suficientemente testado no teatro ligeiro, no circo de antigamente e mais recentemente no cinema. A obediência frouxa de três histórias autônomas ao tema anunciado pelo título torna aceitável uma construção destituída de qualquer rigor. E, finalmente, Os mansos se insere numa tradição brasileira ilustre: a chanchada. Pois apesar de todas essas vantagens o produto final está longe de possuir a boa qualidade que a indústria do país já assegura aos mais variados objetos.

As raízes da debilidade de Os mansos são de naturezas diversas e para nos aproximarmos da mais evidente basta lembrar como afinal de contas são poucas as ocasiões em que o filme funciona plenamente. Já aludimos aos momentos em que o público gargalha como um todo, mas o normal seria que essas belas ocasiões fossem multiplicadas. Essa também é a convicção dos fabricantes de Os mansos, tanto assim que eles tentam durante a fita o feito almejado, mas raramente o alcançam. No fundo só atingiram plenamente o alvo uma vez: o bolo de aniversário. Pelo motivo exposto não vou entrar em pormenores, mas quem já viu a fita pode constatar como é simples a cena do bolo com o seu estopim de surpresa. Trata-se de uma simplicidade por assim dizer em estado bruto, cuja armação depende exclusivamente daquele mínimo de cultura dramática que os mambembes sempre possuíram e de certa competência técnica que não falta ao nosso cinema.

Teoricamente, os responsáveis por Os mansos deveriam ter à sua disposição esses dados e ser capazes de manipulá-los de forma adequada cada vez que fosse necessário, mas isso não sucede.

Vou escolher um exemplo entre dezenas. Numa dada passagem da fita — por motivos que não vem ao caso explicar — um personagem se encontra numa situação embaraçosa. Contra a sua vontade ele se encontra numa praia urbana, de noite e nu. De um lado numerosos turistas estrangeiros descem de um ônibus especial e do outro se aproxima toda uma juventude dourada instalada em jipes. Pois bem, armada a situação os fabricantes de Os mansos ficam sem saber o que fazer dela. Não vou acusá-los de falta de imaginação ou criatividade. Essa exigência seria, aqui, descabida, pois é manifesto que não estariam em condições de satisfazê-la. Só tem sentido criticar Os mansos no terreno que seus produtores escolheram. A fita é precária precisamente como produto industrial. Um repertório de situações e desenlaces prontos, um pouco mais amplo do que os dos antigos circos, é, faute de mieux, uma aparelhagem tão indispensável para a indústria que se quer fazer no país como o resto da maquinaria. O Milagre brasileiro tarda em chegar ao cinema e fitas como Os mansos permanecem numa terra de ninguém: ainda não são indústria e deixaram de pertencer ao mundo dos espetáculos artesanais, inclusive cinematográficos, de onde em parte derivam.

Essa incerteza se acusa no tratamento dado à vulgaridade. Não fornecerei água para o moinho do farisaísmo, tão ativo ultimamente, sobretudo em torno da televisão. As diferentes qualidades que a palavra “vulgar” encobre — de reles a vernáculo — se unificam todas quando pensamos em espetáculo popular brasileiro. Da figura do velho nos pastoreios e da cantiga de distribuição das partes do boi, até Piolin, Dercy Gonçalves ou Zé Trindade, a vulgaridade floresce como parte integrante do espetáculo, inseparável de sua montagem e poesia.

A carga de vulgaridade de Os mansos é muito grande e o estabelecimento de seu elenco pormenorizado seria muito útil, assim como o registro da reação do público, ou de suas parcelas, em cada caso. Alguns estudantes de cinema da USP, Albert [Hemsi], Alain [Fresnot], Wagner [de Carvalho] ou Otávio [Pistelli] — é preferível que sejam só rapazes —, estão certamente cuidando disso. Ficarão devidamente diferenciados os momentos que provocam em grupos maiores ou menores do público os risos propriamente ditos daqueles em que se manifesta um esgar sonoro e individualizado.

Os fabricantes de Os mansos só manipulam bem a vulgaridade quando já a encontram trabalhada pela tradição. Durante a guerra eu estudei Piolin na praça Marechal Deodoro. Pude constatar a importância que adquiriram na sua elementar montagem de atrações os golpes aplicados em setores particularmente sensíveis da anatomia e a maneira íntima e carinhosa com que a dor era expressa. Os mansos retomam essa tradição que é acolhida ou reconhecida com alegria. Quanto mais a vulgaridade é trabalhada, maior é o seu efeito alegre sobre o público.

No sábado à tarde no Olido isso tornou-se evidente. Infelizmente os fabricantes de Os mansos, como industriais subdesenvolvidos que ainda são, não se deram muito trabalho e a maior parte de seu acervo de vulgaridades permanece primária. Atribuo a isso a indefinível melancolia com que as pessoas saem do cinema, sem o menor resquício nas fisionomias dos poucos momentos de alegria realmente experimentados.

Em suma, Os mansos é um filme muito mais vulgar do que seu público, restabelecido aqui o sentido corrente da expressão.


(Publicado originalmente no Jornal da Tarde, São Paulo, 17 abr. 1973.)

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