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Vidas secas respeitou o espírito de Graciliano
O filme brasileiro Vidas secas está fazendo muita gente pensar. Não é a primeira vez que uma obra do cinema brasileiro obtém repercussão , bastando lembrar o retumbante O cangaceiro há dez anos, ou, mais recentemente, a vitória espetacular de O pagador de promessas em Cannes. Diferentemente, porém, das realizações de Lima Barreto e Anselmo Duarte, o filme que Nelson Pereira dos Santos tirou da narrativa de Graciliano Ramos nada tem de retumbante ou espetacular. É quase sempre tão simples, tão contido, seco, quanto o original literário. O impacto que provoca em todos os brasileiros é, no entanto, de tal ordem que seu êxito possui uma profundidade que não foi alcançada pelos anteriores sucessos de bilheteria do cinema brasileiro.
Pela primeira vez um romance brasileiro é transposto de maneira totalmente válida para a tela. A temática nordestina foi durante muito tempo a preferida pela melhor literatura brasileira moderna e a tendência de nosso cinema é retomar esse curso. Até agora, porém, os filmes "nordestinos" haviam se inspirado na literatura popular e no jornalismo secundário, ou no teatro. No primeiro caso está a série já longa que vai de O cangaceiro até Lampião, o Rei do Cangaço. O grande exemplo, ainda isolado, de filme tirado de uma peça teatral é O pagador de promessas. A fita Seara vermelha partiu da obra de Jorge Amado, mas cingiu-se na realização à utilização de um fragmento do romance reelaborado como argumento e roteiro cinematográficos bastante autônomos. O que caracteriza Vidas secas de Nelson Pereira dos Santos é o respeito à integridade da narrativa de Graciliano Ramos. Se, ao que tudo indica, a capacidade de integrar as estruturas romanescas num filme é sinal de maturidade para qualquer cinema, então o cinema brasileiro está atingindo a sua.
A fidelidade de Nelson a Graciliano não significa que o cineasta tenha ousado ignorar a fronteira tradicional entre a expressão literária e cinematográfica, como fazem tranquilamente alguns realizadores estrangeiros. O leitor do romance Vidas secas passa a maior parte do tempo mergulhado nos pensamentos dos personagens, o casal de sertanejos, os dois filhos e a cachorra Baleia. Na fita é através de seu aspecto físico, seu comportamento, seus atos, pouca palavra e alguns latidos que os personagens humanos e a cadelinha se comunicam com o espectador.
Não levando, pois, a fidelidade intelectual até as últimas consequências estéticas, como fez Bresson com Bernanos, Nelson Pereira dos Santos optou pela transposição, o que o levou a proceder a diversas alterações, algumas importantes, e quase todas redundando numa reafirmação de respeito pelo espírito, quando não pela letra, do texto de Graciliano Ramos.
Há na fita uma sequência cheia de significação relativa a cangaceiros da qual não existe, à primeira vista pelo menos, vislumbre na narrativa original. Um pouco de atenção é, todavia, suficiente para fazer-nos sentir a correspondência exata e harmoniosa entre essa passagem da fita e as realidades do personagem literário, o sertanejo Fabiano, que nutre fantasias de ingresso no cangaço como forma de rebelião contra as forças sociais que o oprimem. Em compensação a noite agônica que Nelson Pereira dos Santos faz Fabiano passar na cadeia possui uma explicitação dramática de dor, inclusive física, que se afasta bastante da contenção severa e da generosidade sempre cáustica do escritor alagoano.
O exemplo mais extraordinário de afastamento-aproximação entre o filme e o livro nós o encontramos na sequência em que o filho mais velho pergunta para a mãe o que é inferno, acaba sendo castigado e medita sobre o assunto. O espírito com que Nelson Pereira dos Santos tratou o acontecimento é rigorosamente antagônico à significação que Graciliano Ramos lhe prestou no romance. O curioso é que o cineasta traiu frontalmente o escritor numa passagem bem definida, mas de maneira a permanecer estritamente fiel ao espírito global do livro.
Não é preciso ter lido o livro de Graciliano Ramos para se gostar da fita de Nelson Pereira dos Santos. Esta última adquiriu, para si própria, alta e autônoma validade artística plenamente apreciada pelas centenas de milhares de espectadores que ignoram o livro. Para quem o leu não se coloca o problema ocioso de saber se é melhor do que a fita ou vice-versa. Como, no entretanto, as relações entre o livro e o filme permanecem íntimas, o leitor-espectador de Vidas secas adquire o sentimento privilegiado de conhecer uma obra através de duas artes. Essa experiência é rica de ensinamentos para os estudiosos de estética. Por isso a cadeira de Teoria da Literatura da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo dedicou alguns seminários ao estudo do filme de Nelson P. dos Santos.
Vidas secas é o quinto filme de seu autor, paulista com pouco mais de trinta anos, radicado no Rio onde em 1954 realizou sua primeira obra, Rio, 40 graus, sucesso de bilheteria e crítica, e durante algum tempo assunto obrigatório dos jornais graças à tolice de um chefe de polícia que o tachou de subversivo e pretendeu impedir a sua exibição. Na realidade o filme era composto por uma série de visões singelas da vida popular carioca, tratadas numa maneira aparentada com a dos realizadores italianos do imediato após-guerra. Rio, Zona Norte não obteve êxito comercial ou de estima, e os dois filmes seguintes, Mandacaru vermelho e Boca de Ouro, foram realizações de circunstâncias sem maior significação. Na filmografia de Nelson Pereira dos Santos deve, entretanto, constar ter sido ele o produtor de O grande momento, dirigido por Roberto Santos já há vários anos e cuja posição de melhor filme “paulistano” ainda não foi ameaçada.
Muito próximo dos jovens cineastas do chamado Cinema Novo aos quais tem ajudado com sua experiência e competência, Nelson Pereira dos Santos é frequentemente assimilado ao grupo e os próprios cinemanovistas colocam alegremente em seu ativo o sucesso de Vidas secas. Na realidade o esplêndido amadurecimento da obra se vincula a uma linha estética tradicional que nada possui de revolucionária.
Apesar de sua excelência, Vidas secas tem, como qualquer outra fita brasileira, encontrado dificuldades junto ao comércio cinematográfico do Brasil e cujos interesses são por demais vinculados à importação, distribuição e exibição dos filmes estrangeiros — o jornalista Ely Azeredo denunciou com veemência a sala carioca que lançou Vidas secas e que a retirou de cartaz após uma semana, apesar da afluência do público. É que o cinema em questão havia programado a fita apenas para cumprir o decreto de obrigatoriedade, e estava ansioso por exibir os produtos habituais importados do estrangeiro. O crítico da Tribuna da Imprensa advertiu o comércio cinematográfico de que essas práticas discriminatórias em relação aos filmes brasileiros, impedidos de ter uma carreira normal em nosso próprio mercado interno, são de natureza a fortalecer a opinião dos que defendem a tese do monopólio estatal em matéria de importação e distribuição de filmes.
(Publicado originalmente em Visão, 13 de dezembro de 1963.)