Not Paulo Emílio’s review published on Letterboxd:
Uma das coquetteries de Nelson Rodrigues é a de se apresentar como um reacionário. Na realidade, trata-se de um conservador. Penso no moralista, isto é, no dramaturgo e no cronista da chamada “vida como ela é”. O moralizador das confissões me interessa menos e, aqui, vem pouco ao caso. O que esse conservador conserva é um universo de pessoas médias poluídas por uma condição — a humana — que para ele é um estigma. Nelson Rodrigues não aceita os modos antigos de assumir a condenação original e não admite novos. Os sacramentos foram esvaziados e são insubstituíveis. O que resta para a lamentável humanidade de suas peças e da vida como ela, para ele, é? Mergulhar no pecado, no remorso, no ridículo, no bordel, na morte, na família, no câncer, na polícia (o moralizador a suporta, mas ela enoja o moralista), tudo, naturalmente, sob o signo do sexo. A forma que tomou o pecado original é para valer e os condenados nunca se desvencilharão dela.
A metafísica desse universo pungente e visível sobretudo na leitura das peças de Nelson Rodrigues e sua revelação dependem muito da colaboração do leitor. Quando encenadas, o corriqueiro pitoresco adquire excessivo realce ou então o esteticismo. A sorte de Nelson Rodrigues no cinema tem sido pior. Tirante A falecida, onde pelo menos o gosto mortuário do autor foi plenamente transmitido, as outras fitas tiradas de suas peças, quando escapam de uma grosseria simplista que esconde tudo o mais, é para cair no pior: uma solenidade involuntariamente cômica que não tem nada a ver com o humor sinistro de Nelson Rodrigues.
Toda nudez será castigada é um bom passo à frente na história das adaptações cinematográficas da obra do dramaturgo e não compromete de maneira nenhuma — confesso que tive certo temor — o prestígio de Arnaldo Jabor, o diretor do filme. Não quero dizer com isso que veio à tona o que há de mais profundo no universo contaminado de Nelson Rodrigues. A operação é talvez impossível. Certo tipo de pudor espiritual pode tomar a forma de espessa vulgaridade: se enfocada, atolamos nela e, dissipada, a obra se esvai. A coexistência íntima de uma religiosidade cristalina com a boçalidade é segredo de alguns grandes reacionários — Dostoiévski, Léon Bloy ou Michel de Ghelderode — que não fizeram da tragédia humana um tranquilizante.
Arnaldo Jabor não teve a ambição de filtrar a ganga de Nelson Rodrigues para descobrir inesperadas riquezas. Ele procurou ser-lhe fiel, inclusive no sentido de não se aventurar além das aparências. Mas o cineasta otimista e o teatrólogo pessimista são homens muito diversos e o filme se desenvolve atraído pelos dois. O sortilégio da representação contribui para que gire ora em torno de um polo ora de outro. Darlene Glória o inclina para Jabor, Paulo Porto para Nelson Rodrigues.
Geni, a prostituta de Toda nudez será castigada, adquiriu no filme uma inocência e alegria de viver enérgicas e comunicativas, sobretudo nas danças pelo terraço do bordel ou pelas ruas movimentadas da cidade. E sua luminosidade a distanciou notavelmente do negrume da peça. Jabor lhe arrumou inclusive um emprego de cantora num cabaré. Essa revitalização do personagem deu vigor novo a uma das intenções prováveis do dramaturgo: opor a florescência dos valores de Geni no prostíbulo ao seu fenecimento no seio da família. A cumplicidade criativa entre Jabor e Darlene Glória foi completa.
Já Paulo Porto, emprestando sua máscara ao viúvo Herculano, aprofundou o personagem dentro do espírito do autor da peça teatral. Dirigindo Paulo Porto, Arnaldo Jabor não traiu um instante a preocupação central de Nelson Rodrigues: ficar aquém ou — o que é mais custoso — eventualmente ir além do melodrama e da farsa. O filme conta ainda com um ator de que gosto muito, Paulo César Pereio, mas a função dramática do tipo que encarna, Patrício, diminuiu consideravelmente na passagem da peça para a fita. O delegado, o padre e o médico ofereceriam talvez bons momentos para se detectar a presença maior ou menor de Jabor e Nelson no filme, mas todos os três se eclipsaram. A peça foi escrita tendo em vista uma encenação moderna, mas o diretor optou por uma estrutura cinematográfica tradicional. Como, por outro lado, permaneceu fiel à armação dramática original, foi obrigado a abolir tudo o que no filme se tornaria lateral.
O sucesso de Toda nudez será castigada faz um enorme bem. Ele foi prenunciado em janeiro pelo grande prêmio que a fita recebeu no Festival de Gramado. Se essa manifestação gaúcha alcançar a continuidade, poderá ser a herdeira da tradição do Festival de Brasília, que tanto fez para o cinema brasileiro.
(Originalmente publicado no Jornal da Tarde, São Paulo, 26 abr. 1973.)