Not Paulo Emílio’s review published on Letterboxd:
NOTA: Comecei o Substack Teoria Brasileira do Cinema, onde vou publicar não só tudo que sair aqui, mas ainda textos de outros autores essenciais. O objetivo é fazer um grande acervo de obras clássicas sobre cinema escritas por cineastas e pensadores brasileiros. Este projeto está associado ao curso online gratuito Paulo Emílio: homem de cinema, que está com inscrições abertas apenas por mais alguns dias, até 31 de janeiro.
O texto abaixo também poder ser lido AQUI.
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À propos de Nice não foi simplesmente, para Vigo, uma oportunidade de provar que era capaz de conceber, rodar e realizar um filme. Numa palestra que deu em Paris para o Groupement des Spectateurs d'Avant-Garde [Grupo de Espectadores de Vanguarda], ele extraiu uma teoria da sua experiência, e esboçou os fundamentos do que deveria ser, na sua opinião, o cinema "ponto de vista documentado", o documentário social. Ao concluir, fez uma profissão de fé revolucionária:
Neste filme, por intermédio de uma cidade de significativas manifestações, assistimos à crítica de um certo tipo de mundo. De fato, logo depois de mostrar o ambiente de Nice e o espírito da vida que nela se leva — como em outros lugares, infelizmente! — o filme tende à generalização de diversões grosseiras colocadas sob o signo do grotesco, da carne e da morte; que são os derradeiros sobressaltos de uma sociedade negligente a ponto de nos dar náuseas e nos tornar cúmplices de uma solução revolucionária.
Vigo chegara, de fato, a um a propósito de À propos de Nice. Muito mais que pontos de vista, o que ele introduzira no filme eram sentimentos subversivos. O filme concluído é que, posteriormente, contribuiu para dar alguma ordem aos seus sentimentos e tendeu a canalizá-los para uma ideologia revolucionária.
Os sentimentos agressivos podem parecer, à primeira vista, impessoais. A tendência a ridicularizar militares e padres era corrente na época e se, ao fazê-lo, Vigo experimentava o prazer de se aproximar de Almereyda, a expressão que ele dava a esta tendência ainda era bastante comum. Em compensação, quando ele insiste em escarnecer de de uma certa idade, seu rancor parece ter raízes bastante profundas. Num trecho que já não existe, a "visão de uma senhora idosa que, embora viva, parece já estar em decomposição" é seguida de "uma alusão de mau gosto (lamenta um crítico): uma cova sendo escavada no cemitério". Vigo teria ele próprio recuado e resolvido cortar este trecho? Seja como for, ao expressar o seu ódio conseguiu, ao mesmo tempo, libertar-se. É o que veremos mais tarde em Zéro de conduite [Zero em comportamento] quando é assumida a expressão pessoal e íntima.
Para além dos sentimentos ou ideologias, há neste primeiro filme de Vigo um estilo.
A filiação artística de À propos de Nice apresenta alguns problemas. Vimos um Vigo assombrado pelas recordações de Foolish Wives [1922], e o nome de Erich von Stroheim seria vez ou outra evocado pela crítica. Também o vimos inspirando-se em René Clair na busca de um plano e, sobretudo, acompanhamos sua opção por um método enquanto era guiado pelo gosto — partilhado por seu colaborador — pelo cinema soviético. Também precisamos lembrar da vanguarda alemã, de que Vigo assistira pelo menos a um ou dois filmes (Rutmann e Richter), assim como certos ensaios franceses posteriors a Entr'acte. Em 1929-30, porém, Vigo ainda não tivera oportunidade de ver muita coisa. Suas possibilidades, em Nice, eram restritas, e raras eram suas temporadas em Paris.
Como os homens de vanguarda, Vigo estava seduzido por puros exercícios de forma. Vimos como se deixou tentar por um projeto de sequência fechada com ciprestes e postes telegráficos. Soube resistir. Foi igualmente seduzido por variações de velocidade. Neste caso, cedeu. Em sua obra, observamos, porém, muito mais uma espécie de alegre redescoberta pessoal dos recursos do cinema do que uma influência de seus antecessores. Além disso, ele emprega a câmera lenta ou rápida em função de objetivos precisos e, com isso, distingue-se igualmente da frequente gratuidade dos cineastas de vanguarda.
Entre os jovens, o termo vanguarda gozava de imenso prestígio em 1929-30 e Vigo ficara satisfeito ao ser classificado nesta corrente. Memo porque acreditava que, na época, o termo podia significar ousadia tanto no plano artístico como no social. Ainda hoje, sua obra é apresentada sob este rótulo que, embora desvalorizado, permanece vago e cómodo. Numa perspectiva atual, porém, um exagero confundir À propos de Nice com esta vanguarda sem inocência, de ousadias demasiado hábeis. A habilidade está, de fato, totalmente ausente de À propos de Nice. Quando Vigo quer usar de habilidade para fazer um anjo de pedra voar ou aproximar os garçons que varrem a esplanada de um café com operários construindo carros alegóricos para o Carnaval, fracassa. Quando a beleza ou a feiura irrompem, graças a uma palmeira ou a uma mulher, isso se deve a uma descoberta-criação olhar (que viria a tornar-se praticamente infalível). Mesmo quando ocorre alguma inabilidade, isso em nada diminui o impacto da beleza da palmeira ou da feiura da mulher. Devido a esta falta de habilidade, os efeitos, quando buscados, sempre resultam ingênuos. Inabilidade e ingenuidade essas que em nada prejudicam a expressão artística: Vigo, em À propos de Nice, é um primitivo.
(Excerto de Jean Vigo. São Paulo: Cosac Naify, 2009; p. 96-98.)