Rear Window

Rear Window

Rear Window é uma das obras míticas de Hitchcock, realizada no mesmo ano e com a mesma actriz (Grace Kelly) de Dial M For Murder que o realizador considerava, sem razão, um “filme de circunstância”. Pelo contrário, Rear Window foi uma obra que sempre o fascinou pela possibilidade de “fazer um filme puramente cinematográfico”. Dou-lhe a palavra: “Temos um homem que olha para fora de casa. É a primeira parte do filme. A segunda parte faz aparecer o que ele vê. A terceira mostra-nos a sua reacção. Tudo isso representa o que conhecemos como a mais pura expressão da ideia cinematográfica”.

Este fascínio exerceu-se igualmente sobre o público (Rear Window foi um dos maiores êxitos de bilheteira da carreira de Hitchcock) e sobre os hitchcockianos fervorosos que sempre colocaram este filme, ex-aequo com Notorious e Vertigo, no topo do opus hitchcockiano.

A questão fundamental levantada pelo filme tem que ver com o tão falado voyeurismo de Hitchcock. Na última semana de uma perna partida, James Stewart perde a relação com o espaço que está por trás dele e à volta dele (o apartamento, as visitas, enfermeira ou namorada) para se centrar no que está na sua frente e que, por sinal, é a visão das traseiras (rear window). E o que vê torna-se não só a sua obsessão, como, progressivamente, a das suas visitas e a nossa, todos arrastados pelo voyeurismo de Stewart (e de Hitchcock) para a mais espantosa prospecção dum espaço, de que o cinema conserva memória.

Logo no início do filme, tomamos o lugar de James Stewart. É do ponto de vista que depois saberemos que é o dele, que um travelling genial (desses, de que só Hitchcock tinha o segredo) nos leva, através de uma janela aberta, às traseiras de um prédio em que se multiplicam, ainda indiferenciados, os pólos de atracção. Um gato é o primeiro foco dela. Depois, a câmara recua e descobrimos quem olhava assim: um homem a suar (imediata associação à ideia de angústia, quando pouco depois saberemos que a causa era tão só uma noite muito quente, com um termómetro a marcar a temperatura do ambiente e não do corpo) e a explicação da imobilidade: a perna partida.

Em seguida, a câmara passeia-se pelo quarto, mostrando um décor, revistas, Stewart a fazer a barba. Mas logo somos atirados de novo para a frente e ilumina-se-nos o primeiro dos múltiplos écrans em que o écran se vai dividir (Hitchcock antecipando sobre Nick Ray e Godard e o cinema de vinte anos depois): uma visão erótica, Miss Torso, o rabo de Miss Torso. Ao telefone, o protagonista dirá: “Se não me tiras deste pesadelo, faço uma desgraça”. A “desgraça” só virá algum tempo depois e, como os outros intérpretes do filme, hesitamos durante muito tempo em tomá-la como real, ou fruto da imaginação de James Stewart. Mas desde o início (contraponto na extraordinária conversa com Thelma Ritter) que a “desgraça” vem associada a essa visão, visão culpada e culposa, intromissão oculta num mundo que não cabe devassar. Mas, pouco a pouco, ninguém resiste: a atenção e a tensão de todos fixam-se nessas janelas que se apagam e se acendem e, a partir de certa altura em todos (e em nós) se instala o desejo de que algo de facto tenha acontecido, que Mrs. Thorwald tenha sido de facto morta.

A princípio prevalece a ordem erótica. O que Stewart e nós queremos ver é o corpo nu de Miss Torso, ou o que vai fazer o jovem casal que nos fecha a persiana na cara (com o portentoso gag das suas raras aberturas pelo marido, logo interrompidas pelo chamamento da mulher). Mas, a pouco e pouco, o erotismo pede mais do que sexo. Pede o crime e obtém-no. Queremos ver algo de fascinante e de proibido (como o protagonista) e a nossa visão não será frustrada.

Podem esgotar-se todos os adjectivos com a forma como Hitchcock nos vai metendo na visão de Stewart. Ao princípio, como ele, dispersamo-nos nas conversas sobre amor e casamento e rimos da sua distracção face a Grace Kelly. Exemplo supremo é a sequência em que Stewart segue os preparativos do jantar solitário de Miss “Lonely Heart”, absolutamente idênticos aos que Grace Kelly faz junto dele. Mas gradualmente, e convidados pela cumplicidade de Grace Kelly e Thelma Ritter, a nossa distância perde-se e já só nos interessa o que se passa ali no prédio em frente. À medida que Stewart vai mudando de poder de visão (olhar, binóculo, óculo) vamo-nos enfiando nesse décor e sobretudo na parte dele onde se supõe ter sido cometido um crime.

Mas essa visão é também (como todas) uma visão especular. Não só no sentido em que o prédio da frente reflecte e resume um mundo, como no sentido em que reflecte a situação e os problemas do voyeur. De um lado, o homem imóvel e a mulher que entra e sai; do outro, a mulher imóvel (a vítima, há muito tempo de cama) e o marido que entra e sai. De um lado o desejo de James Stewart de se ver livre de Grace Kelly, do outro o desejo de Thorwald de se ver livre da mulher. Tudo é projecção, jogo de duplos (foi o próprio Hitchcock quem sublinhou uma simetria idêntica à de Shadow of a Doubt) eco e reflexo.

Como o espaço não dá para muito, noto algumas coisas mais surpreendentes:

a) A certa altura, a câmara passeia-se (Stewart estava a dormir) demasiado tempo pelo exterior. Começamos a achar que não acontece nada. De súbito, há um movimento de recuo e vemos Grace Kelly no colo de James Stewart a beijá-lo. O voyeurismo volta-se ao contrário. Estamos a entrar na intimidade do protagonista e essa interessa-nos pouco. Donde, uma quase decepção pelo que vemos, quando o que vemos é mais do que o que alguma vez nos é mostrado em frente. Mas só isso queremos ver e por isso, poucos segundos depois, estamos a seguir de novo o olhar de Stewart sobre o casal em lua-de-mel e sobre o crime (e é Grace Kelly a primeira a pronunciar essa palavra, que há tanto desejávamos ouvir).

b) A sequência da noite de Grace Kelly em casa de James Stewart. Tudo o que devia reter a atenção (e mais do que isso), da camisa de noite ao resto, é secundário face ao que vai acontecer e à morte do cão, único momento, como nota Truffaut, em que a cena se torna puramente objectiva. Só o detective (olhar exterior) repara nos sinais comprometedores no apartamento. Nós, Stewart e Kelly estamos longe disso, tão longe que a Grace só lhe ocorre perguntar se Corey julgará que ela roubou aquelas roupas.

c) O momento em que Grace Kelly vai a casa do assassino, momento do máximo suspense. Mas basta que Miss “Lonely Heart” desperte mais as atenções (o seu falhado suicídio) para que todos nos distraiamos do que está a acontecer-lhe a ela e para que Stewart e Ritter se esqueçam do sinal combinado. Logo a seguir (novo paralelismo) Grace Kelly exibe a aliança que é a prova do crime mas também o sinal do seu casamento com Stewart. Projectando-se do lado de lá, transpondo a imobilidade em mobilidade, ganhou e ganhou-o, mesmo que tenha sido antes quase esquecida.

João Bénard da Costa

Originalmente publicado em Alfred Hitchcock, as folhas da Cinemateca

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