João Bénard da Costa’s review published on Letterboxd:
MUITO LÁ DE CASA, João Bénard da Costa
GENE TIERNEY E A MINHA PERDIÇÃO
Por ela nunca penei, três anos, de amor as penas como por Joan Fontaine, gaivota loura aqui pousada noutras semanas. Com ela nunca andei aos beijos ou às bofetadas como com Maureen, Maureen O’Hara. Também nunca ela me pegou ao colo, como as garças de Hitchcock, para me pôr em sossego sobre as águas, de longe me velando, com os olhos semicerrados, entre o fumo de um cigarro. Mas se não fosse ela, nunca tinha visitado essas grutas mágicas onde as flores do mal são sombras letárgicas.
Naquele tempo não havia Liberdade mas havia, ainda, a avenida que se chama assim. Naquele tempo o Hotel Vitória vivia na clandestinidade, mas o Tivoli ainda não tinha mergulhado nela. E foi no Tivoli, naquele tempo — o mesmo tempo de Joan Fontaine, o mesmo tempo de Maureen O’Hara — que eu conheci Gene Tierney, mulher patchuli, de um tempo que ainda nem sequer se sabia o que patchuli fosse.
Conheci-a muito mais de longe do que as outras. Era natural, nessa minha idade. Mas enquanto ia e vinha, de eléctrico, do Éden das enseadas, semanas e semanas a vi — e, aos 11 anos, as semanas podem parecer anos — num imenso cartaz onde se anunciava em letras garrafais Amar Foi a Minha Perdição. Não me deixaram ver esse filme, mas por causa da proibição ou por causa de Gene Tierney, jamais anúncio algum exerceu sobre mim tal atracção como esse que ali se erguia, debruçado sobre a Avenida. Era escuríssimo. A um canto, uma criança afogava-se e levantava os braços para negras nuvens. Noutro, havia um par abraçado, identificável pelos nomes de Cornel Wilde e Jeanne Crain. Todos viravam as costas a essa mulher tamanha, morena, com magníficos cabelos pretos que lhe caíam livremente sobre ombros nus, como se escrevia no século passado. Cela s’est passé. Je sais aujourd’hui saluer la beauté.
Tinha o nariz da estátua de Psiche, do Museu de Nápoles. Tinha saphyr-eyes (mas tantas vezes iria jurar que eram verdes). Tinha sobrancelhas altas e admiravelmente arqueadas. Tinha a cara em forma de coração. High-Cheek Bone Beauty. E sorria, misteriosa e secretamente. E havia muito de triste e algo de perverso nesse leve sorriso e nesses imensos, insondáveis olhos. Se eu estava certo que a ela se referia o verbo amar, já não sabia se esse amor existira para a perder a ela ou para perdição dos outros. Felizmente, ninguém me ensinou que o título portugês nada tinha a ver com o original, que rezava Leave Her to Heaven. Se o tivesse aprendido, teria perdido muito mais tempo a localizar céus e infernos.
Era um fabuloso melodrama de John M. Stahl que lhe valeu a única designação para o Oscar e foi o maior êxito da carreira de Gene Tierney. Também coisas que aprendi mais tarde. Nessa altura, poucos dias depois de tirarem do Tivoli o cartaz de Amar Foi a Minha Perdição, voltaram a alçá-la para novo filme que me foi proibido:O Castelo de Dragonwyck. Nesse castelo, quais seriam os pecados dela? Também não o soube então. Foi preciso chegar outro Outono — esse, de 1947, — para, na mesma sala, eu a ver pela primeira vez, viúva e apaixonada por um fantasma (The Ghost and Mrs Muir).
Gene Eliza Tierney (diz-se que das iniciais G.E.T. fez a sua vida) nasceu em Nova Iorque, numa boa casa de uma boa família da boa Brooklyn, a 20 de Novembro de 1920.
Tinha 20 anos quando se estreou no cinema: The Return of Frank James , dirigido por Fritz Lang. O technicolor era incomparável, os olhos mais azuis do que nunca. Mas não foi Fritz Lang quem a acendeu nesse papel de jornalista espevitada que puxava Henry Fonda (Frank James) para os caminhos da redenção. Não era ela, ainda, quem faria exclamar, como Virgina Gibbons exclamou no filme seguinte de Lang: «»Good Heavens! Do you see what I see!?»
Também não foi John Ford, (embora, pela primeira vez, de beiço leporino e indomável selvajaria, ela tinha sido soberba como Ellie May Lester na adaptação de Caldwell do Tobacco Road [1941]).
O que tinha que acontecer, aconteceu em The Shanghai Gesture (1941), sob a batuta de Sternberg. Chamava-se Victoria Charteris, era filha de Sir Guy Chaterteris (Walter Huston), mas toda a gente a conhecia sobre o nome de «Poppy» Smith, nesse filme de personagens e nomes todos trocados. E «papoila» não era palavra inocente. «A flower that makes a lot of trouble in my family», como lhe diz o chinês. E a «a lot of trouble», vinha dela, nessa críptica visitação ao mundo da droga, do jogo e da prostituição, rotas rapidamente percorridas por Poppy. E só muito tarde aprendia que tinha mais razões do que qualquer outra personagem para chamar «Mãe» a «Mother Gin Sling» (Ona Munson), a dona do casino-bordel, a mulher que ela odiava, mas de quem fora o mais proibido dos frutos da mais proibida das relações. E apaixonava-se pelo dr. Omar (Victor Mature), doutor em nada, poeta de Xangai e de Gomorra, entre cujas saias (se não me acredita, vejam o filme) havia aquele inadjectivável beijo com que ela o possuía. Quando a mãe, no festim final, consumava a sua vingança e matava a filha do homem do «Gesto de Xangai» era ainda agarrada às saias de Omar que Gene Tierney morria. Talvez de todas as mortes do cinema, a morte sexualmente mais perversa.
Dois anos depois, Gene Tierney chegou a Lubitsch. Heaven Can Wait . Duas vezes se deixou raptar do Don Ameche, antes de se despedir dele e dançar a valsa da «Viúva Alegre», em baile reflectidamente conjugal.
Como Clifton Webb, sempre nos lembraremos do dia que se seguiu à morte de Laura, no primeiro dos filmes que fez com Preminger, em 1944. Obcecado pelo retrato dela, retrato de uma morta, o detective Dana Andrews adormeceu. Quando, contra todos os esforços, sucumbiu ao sono, a porta abriu-se e Laura/Gene Tierney — milagre do desejo triunfante — regressou dos mortos, vestida de branco, voltada a casa. Perante essa aparição, Andrews esfregou os olhos e Clifton Webb desmaiou. O sonho entrou no filme, como o tema de amor eterno, no qual, no fim da obra, Webb nos convida a não acreditar. Só que essa voz que nada pôde no início, nada pôde no fim contra a imagem da sua morta.
Pintaram-na de louro e vestiram-na de louro para A Bell for Adano (1944). Em todos esses filmes (e mais seis) Gene Tierney apareceu a preto e branco. Só voltou ao techicolor no tal Leave Her to Heaven (1945), quando pôs os óculos escuros por cima do fato de banho verde para deixar morrer nas águas do lado de lá da lua (Back-of-the-Moon) o irmão aleijado do marido.
Nesse filme da minha perdição há um longuíssimo campo-contracampo entre elas e Cornel Wilde, num comboio, em que o futuro noivo, perante o olhar hipnótico dela, convoca o cherio do incenso, da mirra, e finalmente, do patchuli.
Em Dragonwyck (Mankiewicz, 1946), quem fora papoila e patchuli, sucumbia ao mortal perfume dos oleandros. Era o filme em que a ela dizia «a bit evil but so good» e convocava «a wicked person», antes de lhe entrar em casa Vincent Price, que a levaria para o «wick castle», Dragonwyck. «One day you’ll wish with all your heart you never came to Dragonwyck», dizia-lhe a governanta quando ela chegava à «rebéquica» mansão. Duvido que o tenha desejado alguma vez, aquela que gostava de comer pêssegos fora de época e de sentir a seda contra a pele nua.
«A lust beauty», chamou Somerset Maugham a Isabel Bradley em The Razor’s Edge (Edmond Goulding, 1946). E «a lusty beauty», foi Gene Tierney, empurrando a Sophie (Anne Baxter) para a morte. «You only lack one thing to make you completely enchanting» dizia-lhe Herbert Marshall. Grande plano dela, ela à espera. «Tenderness». E o sorriso apagava-se-lhe na boca que acabara de pintar.
Tenderness não era substantivo para Gene Tierney. Mas até tenderness houve quando Mrs Muir no filme de Mankiewicz (1947) em que o fantasma que lhe ditava a palavra de quatro letras se despedia dela, enquanto ela dormia, e lhe falava da luz impossível do sol da meia-noite.
«Ah! Comme Gene Tierney est belle quand elle dort!», escreveu um dia Claude-Jean Philippe. Ninguém fora mais belo num sono do que Mrs Muir quando Rex Harrison regressou ao reino dos mortos, nesse filme que é o mais belo filme surrealista da história do cinema.
E como Mrs Muir ou Mrs Van Cleve (Heaven Can Wait) vimo-la transformar-se de nova em velha. Será assim hoje, Gene Tierney, que filmou até 1964, mas que efectivamente se despediu de nós, where the sidewalk ends em 1950, aos 30 anos, antes de internamentos e curas e depois de agitados romances com um presidente (Kennedy) e com um príncipe (Ali Kahn)?
Podia ter a resposta num telefilme que fez em 1980. Mas prefiro tê-la em Les Fleurs du Mal, entre o ópio de Xangai e os oleandros de Dragonwyck. Le silence, l’espace affreux et captivant…
Com ela, uns dedos sábios desenharam-me Gene Tierney — «um pesadelo multiforme e sem tréguas». Mentiria se lhes dissese que não.
P.S. Gene Tierney morreu a 6 de Novembro de 1991 com 70 anos.