João Bénard da Costa: Others Will Love the Things I Have Loved

João Bénard da Costa: Others Will Love the Things I Have Loved

MUITO LÁ DE CASA, João Bénard da Costa

NOTA INICIAL

Basicamente, este livro reúne as crónicas que, entre 11 de Agosto de 1989 e 7 de Setembro de 1990, publiquei no jornal O Independente, sob o título «Muito lá de Casa», igualmente título do presente volume.

Digo «basicamente» porque excluí desta obra quatro crónicas das que então escrevi sob a caseira designação. Três pareceram-me ainda mais caseiras, pois se referem a uma polémica que, nos fins de 1989, mantive com alguns colaboradores d’O Independente a propósito do filme Recordações da Casa Amarela de João César Monteiro. Se vinham à casa, não vinham ao caso e por isso as deixei ficar onde estavam. Outra, em que falava do nascimento do par Bogey-Slim (ou seja, Humphrey Bogart e Lauren Bacall) também não a repesquei. Era demasiado incidental (Ciclo Hawks, de Dezembro de 1989) e não era retrato individual, como todos os que aqui reuni. Em compensação (qual compensação?) juntei mais dois retratos que não apareceram n’O Independente: Esther Williams e Marilyn Monroe. Esboços deles tinham aparecido no III Volume (As Letras) do catálogo do Ciclo de Cinema O Musical, editado pela Fundação Calouste Gulbenkian e pela Cinemateca Portuguesa, em 1989. Mas estão diferentes e mais fiéis ao espírito comum.

Qual espírito? Para além do que explico na primeira crónica – «O Problema da Habitação» – limito-me a acrescentar que, nestes retratos, levei ao extremo um género que comecei a cultivar em vários dicionários de catálogos e ciclos da Cinemateca ou da Gulbenkian. Misturar com algumas informações muito delírio e, com base na vida e obra de «movie stars», meter-me por outras vidas e por outras obras que, como as dele, comigo se moveram. A misturada é de tal grau que vale para este livro o aviso que antecede tantos filmes: Qualquer semelhança entre os personagens retratados e caracteres reais ou fictícios é mera coincidência. Aviso que vale para quem tem nome no retrato (as tais «stars») e para quem não tem nem nome nem retrato mas foi igualmente convocado ou esconjurado. Ninguém venha buscar a este livro outra história que não seja a minha. Esta é uma obra de ficção. Esta não é uma obra documental.

Mas é um dicionário? Podia dizer que sim, citando, salvo o devido respeito, predecessores como Flaubert ou Borges. Mas quem me autorizou a começar este caminho (muito antes destas crónicas) foi o inglês David Thomson. Foi quando li — salvo erro em 1979 — A Biographical Dictionary of Film (William Morrow and Company, Inc., Nova Iorque, 1976) que tive a primeira premonição de até onde podia ir se me largasse. Andei dez anos a treinar. Com estas crónicas, experimentei a alta escola. Se fui ao chão — ou se for ao chão — as nódoas negras são só minhas. Com os mortos não se brinca. Com as saudades ainda menos.

Não me cabe ser mais claro.

Mas cabe-me é, de novo, agradecer ao Miguel Esteves Cardoso e ao Paulo Portas o convite para esta dança. Se não fosse O Independente nada disto existiria. Graças a eles tive casa e pucarinho. E são «as coisas mais sérias da vida».

O PROBLEMA DA HABITAÇÃO

Muito lá de casa. Hoje, ouve-se menos essa expressão. Mas quando era miúdo, diziam-ma muito e muito gosto dela. Eram os tempos e mundos em que toda a gente conhecia toda a gente. Às vezes aparecia um nome novo ou uma cara nova. Mas havia sempre uma tia velha que se demorava num dos apelidos da apresentação. Como quem tirava gavetas da escrivaninhas da memória, perguntava logo se, por acaso, o recém-chegado ou recém-namorado não seria neto, sobrinho-neto, sobrinho sem ser neto ou primo de alguém que, por acaso, tinha um apelido completamente diferente. A resposta, levemente espantada, era invariavelmente afirmativa. Seguia-se logo essa admirável expressão: o tal avô, tio-avô, tio ou primo era muito lá de casa doutro avô, doutro tio-avô, doutro tio ou doutro primo, que casa, uma só casa, era (plural, jamais) todas as casas da família. Em cinco minutos, a árvore genealógica do desconhecido era rapidamente reconstituída. Mortos e vivos, quem tinha casado com quem, o que tinham sido em vida ou morte, como tinham vivido, como tinham morrido. Uma data de coisas datadas para uma data de coisas que se começavam a datar.

As variações começavam mais tarde e podiam demorar horas. As mesmas horas que, entretanto, o recém-vindo ganhava a ouvi-las, em sua casa, quando, lá chegado, confirmava a absoluta correspondência dos factos e das datas e verificava que o meu parente nomeado também fora muito lá de casa.

Às vezes, nem tudo se passava tão cronológica e tão ritualmente. Sempre houve quem gostasse de surpresas. Ao ouvir o novo nome, perguntava-se de chofre se a tia Madalena estava melhor do coração, ou quando é que o Pedro e a Joana se casavam. Se o inquirido era tímido e, para dizer qualquer coisa, perguntava: «conhece-o»?, a resposta vinha com um sorriso condescendente: «Se conheço… O seu tio Henrique era muito lá de casa.»

Muito lá de casa eram todos aqueles de quem, lá em casa, havia retratos em imensas gavetas, que foram a primeira das minhas explorações predilectas, a primeira das minhas paixões predilectas. Esgotados os retratos de família, até ao mais remoto primo, havia centenas (não exagero) de fotografias de personagens que, nem que fosse por um dia, tinham sido muito lá de casa. Senhores barbudos, velhas com grandes chapéus, virgens pálidas, jovens olheirentos. Fotografias com dedicatórias retóricas: «Ao Exm.º Senhor F… offereço como prova de estima». Insaciável, eu queria saber os nomes de todos em toda a casa de que era muito pedia para ver essas gavetas e esses retratos. Se os crescidos não tinham mais o que fazer, identificavam-nos para meu deleite e, em dias mais fastos, contavam-me, para cada um ou de cada um, histórias de espantar.

Foi numa dessas casas, de que eu era muito, que, um dia quando já esgotara todas as gavetas e já sabia de cor e salteado os nomes dos habitantes delas, alguém me passou para a mão um exemplar da «Marie Claire». Era um número antigo, provavelmente de 1940, porque me lembro de saber que a revista interrompera a publicação, depois de os alemães entrarem em Paris. E fui parar a duas páginas — que passaram para mim a ser as páginas centrais — em que estavam retratos de 15 actrizes e 15 actores, arrumados, ao alto para as senhoras e ao baixo para os senhores, por ordem das respectivas alturas.

Era um artigo que respondia à curiosidade de quanto mediam as estrelas de Hollywood, e da esquerda para a direita os tamanhos iam aumentando. Nunca mais vi essa revista, mas aposto com quem quer que seja que a mais baixa das mulheres (primeira, à esquerda) era Janet Gaynor e que o mais alto dos homens era Gary Cooper (último à direita). Não sou capaz de jurar pelos homens, mas, lapsos ou merecimentos, juro que as 15 stars eram Janet Gaynor, Joan Crawford, Norma Shearer, Deanna Durbin, Jeannete MacDonald, Kay Francis, Myrna Loy, Carole Lombard, Eleanor Powell, Hedy Lammar, Ginger Rogers, Greta Garbo, Margaret Sullavan, Merle Oberon e Bette Davis, certamente não por esta ordem.

Entre os homens, estavam, de certeza, Gary Cooper, James Stewart, Clark Gable, Fred Astaire, Bing Crosby, Spencer Tracy, Errol Flynn, John Garfield, Nelson Eddy, Tyrone Power, Robert Taylor, William Powell, Robert Montgomery. Estavam mais dois, mas com vergonha o confesso, não me lembro quais.

Nunca tinha ouvido nenhum desses nomes — ou só um ou outro — e foram as primeiras vedetas que assim, só de retrato, passaram a ser muito cá de casa. Também quis saber as histórias de todos, mas, apesar de haver cinéfilas na família, fui muito pior sucedido do que com aquele belo capitão da Marinha que morrera ao largo da Índia e tivera o corpo lançado ao mar ou do que com aquele médico que salvara o meu tio de morrer aos 18 anos com uma febre tifóide.

A vida se encarregou de pôr fim a essa injustiça. Esqueci a maior parte dos retratados nas gavetas, à medida que fui deixando de as abrir ou que se fecharam as casas que habitavam em efígie. As actrizes e os actores, em truque bem digno da arte deles, elevaram-se desses rectângulos, em que figuravam em corpo inteiro, nas páginas de «Marie Claire», para grandes planos que me ficarão a acompanhar para todo o sempre. Estáticos, nessa primeira visão, animaram-se depois nos muitos, muitos filmes que vi com eles. E, ao longo destes 50 anos, em que quase todos morreram e todos deixaram de ser altáveis em revistas, fui sabendo da vida deles e da morte deles, vi-os chorar e rir, dançar e cantar, fazer vergonhas e coisas sublimes. Vivi as paixões que uns pelos outros tiveram, vi-os beijarem-se e baterem-se, vi-os viver cem vezes e morrer outras tantas. E fizeram-me bem e mal, amar e odiar, chorar e rir. Por uns apaixonei-me eu, por outros não. Muitos forram hoje a casa em que cá vivo. Todos passaram a ser muito lá de casa. E foi só um princípio. Com eles trouxeram, como os demónios expulsos da parábola evangélica, não mais 30, mas mais 300, uns vindos ainda mais de trás, antepassados dessa galerias dos «thirties», outros herdeiros deles, ramos da mesma árvore, filhos ou netos dos altos e baixos da «Marie Claire».
São alguns desses que agora vou evocar nestas páginas. Não me vou ficar pelo «star-system», como em 1940 aprendi. Se aparecerão por aqui muitas celebridades, aparecerão também secundárias e secundários, gentes mais esquecidas, mas que, por uma razão ou por outra, foram muito lá de casa e se sentaram à minha cabeceira na doença e na saúde ou como visíveis voyeurs de cenas eventualmente chocantes.

E — citação de citação da epígrafe que Ruy Bello escolheu para o livro a que fui roubar o título do artigo de hoje — «é obrigatória a inscrição no registo civil dos factos essenciais relativos ao indivíduo… nomeadamente dos nascimentos, casamentos e óbitos» (artigo 2.º do decreto-lei de 18/2/1911). Obrigatória também, na visita à casa, a visita à cama, já que, por outro artigo do mesmo decreto-lei, se determina que, mesmo em casos de penhora por falência fraudulenta, esse é o único bem que não nos pode ser retirado. Como Ruy Belo escreveu, «uma casa é a coisa mais séria da vida». Ser muito dela, seriíssimo, é também.

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