João Bénard da Costa’s review published on Letterboxd:
MUITO LÁ DE CASA, João Bénard da Costa
JOAN FONTAINE: A MULHER DESCONHECIDA
Acontece-me com as pessoas que morreram, acontece-me com as pessoas por quem me apaixono. Logo que morrem, logo que descubro que estou apaixonado por elas, deixo de as ver «em sequência» para as passar a ver em plano fixo, as mais das vezes não colhido do real delas mas de uma fotografia que delas subsistiu. Vejo o retrato, não vejo a pessoa. Quando a começo a conhecer, começo-a a desconhecer.
Na pré-adolescência, foi esse mesmo o sinal que me fez saber que estava apaixonado, pela primeira vez. De repente, a imagem familiar apagou-se e ficou só o paralítico. Por mais que tentasse, não o conseguia animar. Lembro-me perfeitamente que essa descoberta foi dupla e concomitante. Aconteceu-me com quem não tem nada com isso e aconteceu-me com Joan Fontaine. A semelhança do fenómeno e a semelhança da emoção levou-me a concluir pela identidade do sentimento.
Eu vi Joan Fontaine pela primeira vez em The Frenchman’s Creek (1944) de Mitchel Leisen, por aqui chamado A Gaivota Negra. Já convoquei esse filme para os «os meus filmes da vida» e já resumi a história de Lady Godolphin, casada com um homem muito mais velho, que partia ao serviço de Sua Majestade Carlos II Stuart, no século XVII e a deixava sozinha em imenso castelo junto ao mar. Pérfido e lúbrico, era o protector que o marido lhe deixava (Basil Rathbone fazia esse vilão) e romântico e belo era o pirata que, uma noite, lhe atacou os domínios (o mexicano Arturo de Cordova). Joan Fontaine começava por repelir o pirata, mas era este quem a salvava das garras de Rathbone. No fim, fazia-se o mar e deixava-a, com honra mas sem homem, nessa imensa morada sobre as escarpas. Salvava-se a moral, perdia-se ela.
Joan Fontaine, nascida Joan de Beauvoir de Havilland, de pais ingleses, em Tóquio, a 22 de Outubro de 1917, tinha 26 anos quando fez esse filme. Onze tinha eu quando o vi e perdidamente me apaixonei por ela, no Eden, em finais de 1946.
Não sabia então que o filme inaugurava na carreira dela um new look. A frágil e assustadíssima Joan, que emergira para a celebridade em 1937 como a Damsel in Distress, substituindo Ginger Rogers nos braços de Fred Astaire no filme de George Stevens, elevara essa imagem ao cúmulo de tais atributos em Rebecca (1940) e em Suspicion (1941) pela mão de Alfred Hitchcock. O segundo filme dera-lhe o Oscar da melhor actriz, para que já tinha sido designada pelo primeiro. Dulcíssima, meiguíssima, continuou a ser em This Above All, oh-so-british no braços de Tyrone Power (Anatole Litvak, 1942); em The Constant Nymph, adolescente apaixonada pela suave música do suave Charles Boyer (Edomond Goulding, 1943); e no papel titular de Jane Eyre de Charlotte Brontë, com Orson Welles como Rochester (Robert Stevenson, 1944).
Mas, aos 26 anos, a irmã mais nova de Olivia de Havillland (a primogénita manteve o nome de família, ela escolheu a fonte, apelido do padrasto) cansou-se de tanta aflição e de tantos homens muito mais velhos, de passado misterioso e agrestes maneiras. Deixou de usar tranças ou cabelos escorridos e muito curtos. Copiou a imagem com que copiara Rebecca de Winter no fatídico baile de máscaras do filme de Hitchcock. Levantou os louros cabelos e o louro coração ao alto, aumentou os olhos, as pestanas e o tamanho dos decotes, sublinho a boca e apareceu deslumbrantemente bela, no technicolor de The Frenchman’s Creek, o mais caro filme até então feito Hollywood.
Não me peçam mais pormenores físicos que já disse que os esqueci. Mas nunca tinha visto uma mulher tão bela (pelo menos assim o achei) e essa foi a justificação que me dei para o assolapamento. Vezes sem conta, quando a imagem dela mais me fugia, corri para a entrada do Eden, para voltar a ver cartazes e fotografias e para a tentar agarrar. Infelizmente, dependia das finanças da família e infelizmente esta tinha um arreigado preconceito contra a revisão de filmes. Fosse ver outros que ver os mesmos era atirar dinheiro pela janela fora. Só muitos, muitos anos depois revi The Frenchman’s Creek. Mas a paixão apagara-se e Joan Fontaine já era, para mim, muito mais, outras imagens. Nessa, só a voltei a ver, nesse anos 40 dos meus adolescentes inícios, em The Emperor Waltz (Billy Wilder, 1948) e em Kiss The Blood Off My Hands (Norman Foster, 1948).
No primeiro, era uma condessa austríaca, viúva, na corte de Francisco José. Tinha uma cadela de raça e o imperador mandava-a chamar, não para se cruzar com ela, mas para cruzar o animal com um outro da sua estimação. Pelo meio, metia-se o cãozinho de Bing Crosby (género his master’s voice) e o cheiro das coisas pretas podia mais do que o odor do sangue azul. Para Billy Wilder, na sua proverbial «maldade», era o modo possível de fintar os códigos censórios e de dar a ver — a cores — que o que se passava entre cães tinha exactamente o mesmo nome daquilo que se passava entre Joan Fontaine e Bing Crosby.
No segundo, era uma enfermeira inglesa e o breve puritanismo não chegava para lhe evitar aproximável atracção por Burt Lancaster (ao tempo em que os 2º balcões portugueses lhe chamavam o Bruto de Lencastre) marinheiro e cadastrado. E eram os beijos dela que lhe lavavam as mãos criminosas e ensanguentadas.
Em qualquer dos filmes fora-se a duradoura ninfa (papel que, aliás, lhe valeu mais uma designação para o Oscar) e ficara a ardentíssima loura, com os sonhos tão húmidos como os meus, com piratas, donos de cães de maus costumes e bandidos tatuados.
Os anos passaram para ela e para mim. Mas, como o cinema é máquina de eterno retorno, foi essa passagem dos anos que me levou a conhecê-la na imagem angélica dos seus tempos mais oscarizados.
Lembram-se do nome dela em Rebecca? Não se podem lembrar, porque não o tinha. Uma das grandes astúcias do filme residia na oposição entre a mulher sempre nomeada e jamais vista (Rebecca) e a mulher sempre vista e jamais nomeada: ela própria, dama de companhia de Florence Bates, que não sabia onde meter as mãos nem o que comer ao pequeno-almoço e passava, sem nome próprio nem apelido, dessa apagada condição à de segunda Lady De Winter.
Mas, quanto mais vejo o filme (e esse já o vi mil vezes) mais se impõe outra astúcia, normalmente pouco comentada. É que não há outra Rebecca senão Joan Fontaine e que esta, qual médico e monstro, é ao mesmo tempo a reencarnação da funesta senhora de Manderley a catarse dela. Surge no filme a Laurence Olivier, quando este, suspenso dos abismos, recorda Rebecca, de certo modo como reaparição dela. Rebecca é o único nome próprio que lhe dão. Precisamente a chama assim a cunhada (Gladys Cooper) quando a vê descer a escada com o vestido da outra, nessa nova reaparição que desencadeia tudo, na noite em que descobrem, no fundo do barco, o corpo da rival. E é ela quem, na sequência da cabana, sugere ao marido o plano que lhe permitirá passar por inocente. E, quando fica sozinha em Manderley, a mansão arde, consumindo nas chamas tudo e todos que a tinham querido expelir como importuna. De resto, não é todo o filme um sonho dela? («»Last night, I dreamed I was again in Manderley»). Se é gata borralheira, é gata borralheira de um barba azul e ninguém casa inocentemente com barbas dessas.
Suspicion é uma variação do mesmo tema. Se não ficou na versão final a diabólica história da carta em que ela denunciava Cary Grant, ficou o suficiente para sabermos quanto ela merecia esse copo de leite, cuja brancura é tão suspeita como a dela.
E, de imagem em imagem, Joan Fontaine surgiu, pela última vez, como outra mulher desconhecida: essa que, no fabuloso filme de Ophuls, baseado em Stefan Zweig Letter from an Unknown Woman, de 1948) era esquecida pelo músico (Louis Jordan) que perdidamente amara em Viena.
Disse pela última vez? É verdade que Joan Fontaine ainda filma — aos 71 anos — e que o João César Monteiro a viu em carne e osso este ano, em Salsomaggiore, a presidir ao júri do Festival. Mas todos os filmes que fez de 1950 para cá (incluindo um Nicholas Ray — Born to Be Bad, de 1950 — e um Fritz Lang — Beyond a Reasonable Doubt, de 1956) já só dão uma imagem bem diversa, algo antipática, algo agressiva, algo frígida.
Bem conhecível se tornou, afinal. Chamou às memórias (1978) No Bed of Roses e nenhuma rosa nem nenhuma cama se evola desse livro, onde não tira a mãe da boca e onde perpassam, sem existência, os homens e os filmes da vida dela. Mas, sob a noite dos forties, o retrato desta desconhecida «leaves a dark / unbroken glory, a gathered radiance / a width, a troubling peace.»
Muito suave, muito obscura. Foi o meu September Affair, ao vago som de Rachmaninoff.