Marcio Sallem’s review published on Letterboxd:
A carreira de Darren Aronofsky é o testemunho de sua habilidade em penetrar no íntimo dos personagens estudados em busca do que dirige suas obsessões e ansiedades, sem realizar pré-julgamentos nem concessões. A começar com o matemático de Pi, que buscou achar a resposta da existência detrás do número matemático, à bailarina de Cisne Negro, com o sonho de executar perfeitamente os passos do clássico Lago dos Cisnes, aos dependentes químicos de Réquiem para um Sonho e ao aventureiro em busca da eternidade em A Fonte da Vida, Aronofsky adapta a forma de seu cinema ao universo dos protagonistas. Daí o motivo de a forma de O Lutador, naturalista até, contrasta com a de mãe!, realista fantástica de horror, até chegarmos em The Whale, adaptação da peça de Samuel D. Hunter.
Nele, Brendan Fraser interpreta Charlie, um professor de literatura com obesidade mórbida, que ganha a vida como professor em cursos on-line e sobrevive no apartamento onde mora graças aos cuidados da enfermeira Liz (Hong Chau), irmão de seu ex-companheiro falecido. Certa vez, Charlie é visitado pelo missionário Thomas (Ty Perkins), que bate em sua porta e o socorre quando está tendo um ataque de pânico. A iminência da morte confere a Charlie o desejo de restabelecer os laços com a filha, Ellie (Sadie Sink), rompidos depois do divórcio com a mãe (Samantha Morton).
Não é a primeira vez que Darren Aronofsky trabalha com relações entre pais e filhos: havia feito isto em O Lutador, em que o autodestrutivo Mickey Rourke tentava reconectar-se com a filha, vivida por Evan Rachel Wood, ou em Cisne Negro, em que a relação com a mãe era foco de angústia para a personagem de Natalie Portman. Agora, a relação é melodramática (não no sentido pejorativo), pois nasce na dissolução do casamento e na distância entre pai e filha. Uma distância que Charlie deverá percorrer, literal e metaforicamente, caso deseje redimir-se.
Assim, apesar de ser um filme de câmara, ambientado em um mesmo ambiente, The Whale não é monótono (no sentido pejorativo da palavra, repito). Darren Aronofsky é competente em expandir e comprimir o espaço do apartamento quando a narrativa assim exige. Deste modo, a encenação explora o apartamento seguindo os movimentos vagarosos de Charlie e, ao mesmo tempo, ilustra a rotina do protagonista e a falta de mobilidade inerente a pessoas com obesidade mórbida, com acessórios que o auxiliem a deitar e levantar da cama ou a apoiar-se de pé no banho. Apesar de o espaço ser fixo, o tempo é fluido, ainda que corra linearmente: os cochilos do protagonista interrompem o fluxo da ação e criam a sensação de estarmos em um estágio moribundo, entre a vida e a morte, apropriada a esta semana da vida de Charlie.
Em frente às câmeras, Brendan Fraser ocupa a imagem de duas formas: fisicamente, diante da fisionomia do personagem, do tamanho da tela 4×3, bastante apertada e claustrofóbica, e dos primeiros planos em que o rosto do personagem ocupa a imagem por completo; mas também emocionalmente, pois a atuação delicada do ator esforça-se em ilustrar um homem que enxerga positivamente a tragédia em que está. Apesar de haver momentos de entrega à compulsão alimentar, a consequência da ansiedade por que atravessa, Charlie esforça-se em enxergar o belo até no comportamento grotesco da filha, que o humilha com frequência.
Por falar em Charlie, a direção prepara o espectador para o instante em que encontraremos Brendan Fraser na pele prostética do personagem. Durante uma aula do curso lecionado, a câmera aproxima-se da tela preta onde deveria estar a imagem de Charlie, sob o pretexto de que a webcam está danificada, e penetra na escuridão para jogar luz no personagem. Ao enxergar o ator, pude sentir dor e trauma, confirmado na incapacidade de realizar atividades corriqueiras, a exemplo de alcançar a chave que caiu sob a mesa. A maquiagem disfarça os pontos em que a roupa prostética encontra a pele do ator, enquanto modifica sua aparência: o cabelo escasso, as dobras no pescoço e o suor acumulado, as escaras visíveis durante o banho. Já Brendan aprende a caminhar e a se movimentar com o excesso de peso, e passa ao espectador a dificuldade inerente à obesidade mórbida.
Já o título remete à Moby Dick, o clássico escrito por Herman Melville, cujo ensaio Charlie lê e relê com a intenção de combater os constantes ataques de pânico. A razão será explicada na conclusão de The Whale, que subverte a forma até então apresentada – por exemplo, a falta de iluminação cede espaço à iluminação intensa – para alcançar, acredito, a conclusão mais positiva e esperançosa do cinema do diretor desde A Fonte da Vida. Um fim à altura de um protagonista cujos sofrimento e esperança conservamos dentro de nós, tal como as faces de uma mesma moeda.