Sweet Revenge

Sweet Revenge

"Os reflexos da montra percorrem, elípticos, a cara espantada de Vurrla; por vezes, a sua face dissolve-se neles, sob a dureza metalizada do carro.

Esta montra que abre, sem aviso, a primeira sequência de Sweet Revenge, ainda antes de quaisquer créditos, projeta-nos uma ambivalência: somos voyeurs que testemunham o olhar rendido de uma mulher ao Ferrari que vê passar na montra giratória de um stand de automóveis. Nessa tímida espreita (a nossa, paradoxalmente agigantada no grande ecrã) que estabelece o enleio, iremos ser nós, também, seduzidos? Este plano compõe- se, talvez, como o mais belo que veremos no filme, sumarizando, não só a premissa da história, como apontando a parte do percurso profissional de Jerry Schatzberg.

A sua carreira enquanto retratista e fotógrafo de moda, que iniciara na década de 50 (cuja vivência terá alimentado, de alguma forma, a sua primeira longa-metragem, Puzzle of a Downfall Child, realizada em 1970) e que continuou, aliás, de modo mais sistemático do que o cinema, que abandonou em 2000, emerge de forma substancial neste Sweet Revenge – é um filme que problematiza a comodidade, o luxo, o desejo do produto capitalizado – e, em consequência, a persuasão da imagem.

A conclusão parece inevitável para um fotógrafo que começou na construção de iconografias (poses, vestidos, rostos) e se veio a cimentar com um realismo cru na década de 70 (aliás, Puzzle of a Downfall Child parece inaugurar, logo, esta quebra, no desencantamento que revela da indústria da moda - como se a fotografia fosse, para Schatzberg, o sonho da ficção, e o cinema, o respetivo contrapeso da realidade, dois mundos contrastantes, mas conectados). Mas enquanto Puzzle procura a problematização dos bastidores da moda, e o contraste subjacente entre o que espelham e o que escondem – o lado negro da beleza – Sweet Revenge debruça-se não tanto pelas figuras, mas pelos objetos e os seus métodos de propaganda, o seu estatuto de desejo, sempre distante. Ainda que não se elabore, direta ou explicitamente, como um filme sobre fotografia (a sensibilidade de Schatzberg revela-lhe, ainda assim, as pegadas, na constante procura pelo enquadramento adequado) vamos sempre parar aos seus efeitos, enquanto porta-estandarte da ditadura do consumo - torna-se difícil, muitas vezes, no cinema de Schatzberg, descurar uma análise biográfica, tal é o jogo de espelhos entre a pessoa e o artista.

É de salientar como, nestes processos de sedução e emancipação (esta última, quase sempre falsa ou falhada, revelação das tonalidades realistas do realizador), tantas vezes vivenciados pelas personagens de Schatzberg, o objeto do “automóvel” aparece recorrentemente como veículo (passo o pleonasmo) do desejo. Pelo menos, é o que acontece ao olharmos para Scarecrow, o filme que precedeu este Sweet Revenge, e que deu a Schatzberg um dos filmes mais reconhecidos da sua carreira (ainda que a longo prazo, tendo em conta que o filme foi um falhanço de bilheteira à época). Mas enquanto em Scarecrow, as personagens que deambulam, sem lar, pelos montados americanos pretendem, ironicamente, abrir uma lavagem de carros (se ao menos tivessem um carro...), em Sweet Revenge, não ficamos, apenas, pela lavagem, pelo toque na superfície do desejo, que permite a independência, a liberdade, mas que é inalcançável. Chegamos, mesmo, à penetração, à posse do objeto desejado - o agarrar das mãos no volante e, com o pedal mais à direita, acelerar pela pirâmide social acima (a montagem paralela em que Vurrla vende o mesmo carro a inúmeras pessoas sob várias máscaras, numa burla descarada, entrecortada pela sua figura a rodopiar dentro do Ferrari, enuncia esse desesperado sonho de poder, aqui, doce, cruelmente ingénuo sob um onírico piano - a vontade de se afirmar sem olhar a meios, indo do lixo ao luxo).

A única personagem que se coloca, de forma continuada do lado dela, ao longo de toda a trama, é Edmund, um afro-americano cujo automóvel dá nome a este Sweet Revenge. São eles os dois rebeldes misfits (recorrentes no cinema de Schatzberg), renegados pela sociedade e que dela se querem “docemente vingar” - contrariamente ao namorado de Vurrla, ou ao omnipresente advogado, onde se denuncia sempre um qualquer laivo, ainda que pouco estável, de moralidade.

É por isso que, quando Vurrla começa a sua obsessão com o tal carro que viu na montra e que, desesperadamente, pretende comprar, justifica, assim, a sua decisão ao namorado: “It’s a precision instrument, it’s got class, it’s the best. Do you know the way people treat you when you got the best? They treat you different.” O modo como exprime a sua vontade é, ele próprio, um anúncio publicitário – simples, plano, e até rima. Paradoxalmente, este pedaço de diálogo expõe uma das disfunções do filme, e é esta sua discursividade, demasiado óbvia, autoconsciente, rígida no corpo dos atores, onde a impessoalidade da crítica à hegemonia consumista dos EUA, sem indícios de grande profundidade além da sua premissa, se alia a soluções visuais que muitas vezes pretendem impressionar, sem outro motivo para além disso - o transporte do espelho no carro, ao início do filme, que ainda que se traduza num plano visualmente apelativo, parece demasiado intencional, sem grande correspondência com o (já magro) argumento. Há, ainda assim, sequências bem conseguidas – o já mencionado plano de abertura, ou o advogado separado pelas muitas grades, como sintomas de distância e alienação, na sequência do encarceramento de Vurrla, expondo laivos de Sirk.

No fundo, Sweet Revenge impõe-se como um objeto de curiosidade na filmografia de Schatzberg, uma obra “para completistas”, que é parte carsploitation, parte declaração de intenções – tudo, em nome do glamour. Como resume o diálogo final: “Was that absolutely necessary? No, but it’s a nice touch.”"

Miguel Pinto

Block or Report