Puzzle of a Downfall Child

Puzzle of a Downfall Child

"Primeira peça do singular puzzle que é a carreira de Jerry Schatzberg no cinema, Puzzle of a Downfall Child pode ser visto tanto como um ponto de partida como um ponto de viragem no seu percurso artístico. Quando faz a sua estreia na realização, Schatzberg tem já 43 anos e um sólido percurso como fotógrafo, iniciado nos anos 1950 e feito sobretudo na área da moda e na fotografia de celebridades (são imprescindíveis para a iconografia dessa época os muitos retratos que fez de gente como Bob Dylan, os Rolling Stones, The Beatles, Jimmy Hendrix e muitos outros nomes da música, do cinema e do showbizz americano). Ao passar da imagem fixa para a imagem em movimento, Schatzberg estava a potenciar algo que sempre esteve contido nas suas melhores fotografias: a criação de um universo ficcional ancorado em personalidades magnéticas. E obviamente ao escolher como tema do seu primeiro filme a ascensão e queda de uma modelo psicologicamente frágil no mundo predatório da moda, Schatzberg estava a jogar em casa. O ponto de partida do argumento que escreveu a meias com Carole Eastman fora o extenso depoimento que gravara com uma antiga modelo sua conhecida (Anne Saint Marie), cuja trajectória serviu de base ao desenho da personagem de Lou Andreas Sand interpretada por Faye Dunaway, à qual o filme deve a sua mera possibilidade de existência já que terá sido o seu nome (dado o recente sucesso de Bonnie & Clyde) que desbloqueou o financiamento necessário a um filme “difícil”. A intensidade da entrega do desempenho de Dunaway, num filme em que ela está não só presente em todas as cenas como praticamente em todos os planos, encontra também um contexto fértil para especulações no facto da actriz ter anteriormente tido experiência como modelo e na ligação sentimental que mantivera nessa altura com um tal fotógrafo chamado Jerry Schatzberg (será abusivo ver na personagem de Aaron, o amigo fotógrafo, e na relação com Lou Andreas uma projeção ficcional daquele?). A ressonância do jogo de espelhos que constituem esses cruzamentos biográficos com o fio narrativo do filme está, aliás, na base de uma saborosa (quase) private joke: o momento em que na lista negra dos fotógrafos com quem a personagem de Dunaway nunca voltará a trabalhar, vemos que incluiu o nome Schatzberg (segundo a própria, a ideia foi dela e ele terá aceitado a premonitória provocação. A verdade é que, pelo menos no cinema, não voltariam a trabalhar juntos).

À segurança de conhecer bem os ambientes e os tipos humanos que são o centro do filme, Schatzberg somou uma ambiciosa visão formal que torna Puzzle of a Downfall Child uma das suas obras mais originais e conseguidas, um exemplar vibrante mas injustamente menos conhecido da renovação do cinema americano na viragem dos anos 1960 para os anos 1970 e que tem cabido no rótulo genérico de Nova Hollywood (os seus dois filmes seguintes - The Panic in Needle Park e Scarecrow - foram certamente mais decisivos para a inscrição de Schatzberg como um nome importante desse “movimento”). Narrativamente, e naquela que é a principal ruptura com códigos clássicos de storytelling, Schatzberg escolhe uma estrutura fragmentada em vários flashbacks desalinhados cronologicamente, o que, além de criar um mais interessante desafio ao espectador, espelha igualmente o estado mental da personagem principal e a progressiva deterioração da sua saúde mental (o realismo mais convencional dos primeiros dois terços do filme darão lugar progressivamente a uma dimensão visual mais onírica fruto de uma completa subjectivização do olhar do filme ao ponto de vista dessa personagem). Mas a verdade é que essa subjectividade estava lá desde o início, reforçada pelo estatuto de Lou Andreas enquanto narradora da (sua) história a Aaron para o projecto do filme que ele quer fazer sobre ela (subtil inscrição no material do filme da sua própria génese). Lou Andreas pertence a uma tipologia de narrador descrita pela teoria literária como “unreliable narrator”, o que torna a sua história, mais do que um relato fiel de acontecimentos, um conjunto de materiais para “análise” (a presença de psicólogos e psiquiatras no filme que tentam compreender o mistério desta personagem não deixa de evocar a posição do próprio espectador).

Estudo de uma personagem que permanecerá até ao fim um enigma não completamente resolvido – a abertura e o fecho do filme, na casa junto ao mar em que Lou Andreas se encerrou depois da fama efémera, não deixam de trazer à lembrança o solitário destino de Charles Foster Kane confinado em Xanadu (como em Citizen Kane, também está lá fora a placa de “no trespassing” e, como nesse filme, somos convidados a desrespeitar o aviso) -, Puzzle of a Downfall Fall entronca porventura melhor em outras filiações cinematográficas. Por não conseguir lidar com uma realidade profissional que abusou da sua compulsiva necessidade de ser admirada (o filme oferece-se por isso a uma profícua e muito contemporânea releitura das questões de género), Lou Andreas é uma “mulher sob influência”, emocionalmente esgotada, que encontra correspondência em outros poderosos retratos femininos de uma época marcada pela modernidade de tipos psicológicos mais “realistas” (à falta de melhor palavra) e contraditoriamente complexos: Cassavetes, claro, mas também Bergman, Godard, Antonioni, Truffaut, Fellini pairam também por aqui sem que isso signifique uma inspiração directa mas sim uma confluência entre o cinema americano e o cinema de autor europeu muito típica do período (numa outra coincidência sintomática do ar dos tempos, lembramo-nos que Wanda de Barbara Loden estreara pouco meses antes de Puzzle).

Para além dessas influências que se pressentem no filme, há ainda inscrito de forma explícita um outro cinema, americano de produção mas também ele embebido de raízes europeias. Nascido no Bronx, tendo sido sempre um nova-iorquino profundamente enraizado na cultura popular cinematográfica americana, Schatzberg vai "roubar” a Shanghai Express de Sternberg aquela que é uma das cenas mais bonitas de Puzzle. Num filme tão carregado do zeitgeist em que foi feito, preferimos talvez à poderosa imagética disruptiva de alguns momentos (nomeadamente as irónicas cenas das sessões fotográficas das produções de moda e as perturbadoras sequências do internamento no hospital psiquiátrico), o confronto entre as imagens recuperadas do fabuloso beijo de Shanghai Express de Sternberg e o seu “reenactement” com Lou Andreas no lugar de Marlene Dietrich e o jovem modelo seu colega no de Clive Brook. Nessa muito ambígua cena – em que, por uma vez, Lou Andreas não é uma vítima, mas sim uma sedutora completamente senhora da situação -, a personagem é transfigurada numa mulher “empoderada”, capaz de mudar as regras do jogo da eterna guerra dos sexos e assim se ligando a uma longeva tradição de modelos cinematográficos femininos. Mais do que uma homenagem póstuma ao classicismo, são a prova da sua infinita resistência aos ventos de mudança que então sopravam na paisagem cinematográfica americana. Como se veio a saber - até pelo próprio Schatzberg nos seus filmes seguintes - a notícia da morte do classicismo fora muito exagerada."

Nuno Sena

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