Maria by Callas

Maria by Callas

"Tom Volf estreia-se na realização com uma homenagem à “diva assoluta”, Maria Callas, num filme em que a história e a personalidade da artista se desvendam através de vários indícios. O primeiro é-nos dado pelo título, MARIA BY CALLAS; é a própria, no início do filme, a confessar sentir que existem em si duas pessoas: a Maria que gostaria de ser, e a Callas que tem de respeitar. E é realmente difícil dissociar o fenómeno artístico que foi (e ainda é) Callas, do seu universo íntimo e privado. Por um lado, o trabalho ocupa um papel central na sua vida: em certas alturas, colidindo com os seus sonhos pessoais, noutras servindo quase como refúgio das desilusões privadas. No entanto, e como a própria reconhece, no seu canto e no seu trabalho, encontramos “todo o seu ser”. No filme, “passamos constantemente de Maria para Callas e da sua vida pessoal para a sua carreia e vida pública (...), ficamos com uma ideia de como as duas comunicam e, por vezes, lutam e se sacrificam uma pela outra” (Tom Volf).

Durante cerca de um ano, Tom Volf viajou por todo o mundo, com o propósito de filmar entrevistas com os vários amigos da cantora. Inesperadamente, estes acabaram por partilhar com o realizador uma série de vídeos, gravações de áudio, correspondências e fotografias, muitos deles desconhecidos do público. MARIA BY CALLAS é o resultado desta recolha: um documentário composto exclusivamente por material de arquivo. Para além dos documentos partilhados pelos amigos de Maria, Volf recorre a arquivos institucionais, recolhendo vídeos de espetáculos, entrevistas, reportagens, fotografias, imagens da rodagem de MEDEA, entre outos. É através da montagem dos materiais recolhidos que Volf cria a noção de uma narrativa cronológica que dá conta da vida da artista. As imagens são deixadas à interpretação do espectador, e são completadas pelas palavras de Maria, ditas em entrevistas públicas, escritas nos seus diários ou partilhadas com os amigos através das frequentes cartas. O filme é organizado a partir da inédita entrevista de 1970, no The David Frost Show, que se pensava perdida e que o realizador encontra através do mordomo pessoal de Callas, Ferruccio Mezzadri. Esta entrevista é o único elemento que não é enquadrado cronologicamente, servindo como recurso, ao longo de todo o documentário, para conduzir a história através das palavras de Maria.

O percurso artístico de Maria Callas começa, oficialmente, aos treze anos (quando entra para o Conservatório Nacional, na Grécia) e, de certa forma, nunca termina, passando os últimos meses da sua vida ensaiando, na esperança de voltar aos palcos. Como escreve nas suas memórias, Maria vive nas canções que interpreta, pois é o canto a única linguagem que verdadeiramente possui. Por isso, “todas as arias vistas no filme têm o mesmo tipo de duplo significado para a mulher e para a figura pública” (Volf). O realizador decide presentear o espectador com a reprodução completa de três arias, associando o significado das palavras cantadas por Callas ao período da vida em que ela as cantou: Casta Diva (Norma, de Bellini), L'amour est un oiseau rebelle (Carmen, de Bizet), Vissi d’arte, Vissi d’amore (Tosca, de Pucini). De modo a recriar a experiência das suas atuações, Volf tenta reproduzir as reverberações de uma ópera ou de uma sala de espetáculos, para que o público perceba, “através dos seus próprios sentimentos, da sua própria mente, e do seu próprio coração, como ela era grandiosa” (Volf). Contudo, a sua carreira extraordinária não escapou a controvérsias associadas à sua reputação de diva tempestuosa, que Volf procura desconstruir. Fá-lo dando-nos a possibilidade de ouvir o seu testemunho (muitas vezes partilhado em correspondências privadas) sobre os conhecidos episódios do cancelamento de Roma em 1958, ou o incidente com Rudolf Bing da Metropolitan Opera.

Talvez tenha sido esta ténue fronteira entre a sua obra e a sua vida que fez com que, de certa forma, o drama dos seus personagens invadisse o seu universo interno; um mundo em que penetramos, neste filme, a partir da sua correspondência privada (lida, na versão inglesa, pela cantora lírica, Joyce DiDonato). Muito distante da diva tempestuosa que os media descreviam, encontramos uma mulher sensível, que luta por equilibrar a sua carreira com os seus sonhos e desejos pessoais de amor. Esse “pássaro rebelde” que encontra quando conhece Aristotle Onassis, o grande amor da sua vida. Afastada do stress dos palcos, Maria consegue finalmente satisfazer aquele que acredita ser o maior desejo de uma mulher: “ter um homem e fazê-lo feliz”. Este grande conflito entre o sonho de construir uma família e a vontade de ser uma artista (que Maria parece aceitar hesitantemente), assim como o desejo profundo de descer do pedestal de diva e de sentir-se mulher, permeiam todo o documentário.

A felicidade pessoal leva-a a afastar-se do trabalho, mas é este que procura num momento de crise profunda. Depois de se ter visto obrigada a abandonar o palco durante um espetáculo, em 1965, devido a “uma grande crise de depressão”, e após a dolorosa separação de Onassis, Maria aceita o seu primeiro (e único) papel no cinema: Medeia. Esta é a ocasião em que Maria conhece Pier Paolo Pasolini, com quem terá uma amizade intensa, um amor que se reflete na extrema admiração do realizador, que lhe escreverá poemas e desenhará retratos. Pasolini dá, àquela que viria a ser a sua grande amiga, o seu último grande papel (ou, pelo menos, a sua última grande interpretação), num filme em que a sua voz e, sobretudo, o seu canto, são poupados. Esta é a prova perfeita de que mais do que uma grande cantora, Callas era também uma grande intérprete. Como João Bénard da Costa assinala, existe uma “forte tonalidade autobiográfica” em que “mesmo a singular frustração deste filme está relacionada com a sua principal intérprete e com o seu autor”. Por isso, a voz de Callas surge apenas uma vez, nesses “berros que, ‘do fundo da sua angústia, nos dão ainda a ouvir os ecos duma esperança’” (João Bénard da Costa); essa mesma esperança que a leva a passar os seus últimos anos de vida a ensaiar, com o desejo de voltar aos palcos.

Talvez sejam as palavras de Tosca, de Puccini, cantadas em 1965, no Convent Garden, a melhor maneira de descrever Maria Callas, “vissi d’arte, vissi d’amore (...) diede il canto agli astri, al ciel”."

Sara Oliveira Duarte

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