folhas da cinemateca’s review published on Letterboxd:
"De cada vez que vejo Hatari! lembro-me de uma sessão no Liceu Camões, em 1965, ainda a cópia da estreia portuguesa estava em distribuição. Orientei um curso de cinema para alunos e o reitor, já eu havia deixado de dar aulas lá, convidou-me, por ocasião de uma qualquer efeméride que não recordo, a escolher um filme e a apresentá-lo e introduzi-lo aos corpos docente e discente. Em pleno fervor hawksiano, escolhi Hatari!. Já não me lembro do que disse na introdução, mas pus o filme nos píncaros (como o continuo a pôr) e devo tê-lo emoldurado em “politique des auteurs”, primado da “mise-en-scène”, esplendores da arte da evidência, comparações com grandes universos de aventuras de outras artes. Hawks ainda era uma “dama” porque era preciso bater-me.
Os alunos gostaram muito, mas, no final, vi pasmosas expressões de pasmo na cara de alguns dos meus mais ilustres ex-colegas (e dois ou três eram ilustres mesmo). Estaria eu a falar a sério quando defendia que Hatari! era uma Obra de Arte? Estaria eu em meu perfeito juízo quando o comparava a Conrad, a Hemingway, a Melville e sei lá a quem mais? Usei todos os meus argumentos, mas não venci nem convenci. Para eles – estava-lhes na cara – nada desta história de caçadas merecia ser tomada minimamente a sério. E houve um que me disse que tudo isto não passava duma “cowboyada”.
Não conhecia, então, nessa altura, a frase de Hawks em que o realizador falou dos seus seis “westerns”, “if you call Hatari! a western, which I do in my way of thinking about it”. Se a conhecesse teria dado razão ao interlocutor. E em vez de lhe falar de “mise-en-scènes” e dos prodígios da “macacada” que dá o título ao filme (Hatari! significa perigo e é palavra apenas pronunciada no filme quando os indígenas assistem aos primeiros resultados da invenção de Pockets) ter-lhe-ia respondido: “Acha que a história de um homem, ressentido com o amor e a vida, por causa de uma experiência tramada com uma mulher que não era boa rez, que reaprende a amar e a confiar em consonância com o grupo onde está inserido e com o mundo natural que o rodeia, é uma história que não vale um caracol?” Talvez este superficial resumo os tivesse abalado mais do que as minhas elucubrações estéticas. E acontece que não estaria a trair nada, porque neste filme minimal estaria a dar-lhe, minimalmente, o essencial. Essencial de Hatari!, essencial de toda a obra de Hawks. Porque esse resumo é tão válido para o filme que vamos ver, como para Rio Bravo, El Dorado ou Rio Lobo, tão válido para Hatari! como para – meia dúzia de exemplos mais flagrantes – Tiger Shark, The Road to Glory, Only Angels Have Wings, To Have and Have Not. It’s the same old story.
Por que é que Hawks classificava Hatari! como um “western”? O cenário não é o oeste é Tanganika, não é a América do Século XIX mas a África do Século XX. Não há índios (os nativos que por lá aparecem são bem sossegados e tementes aos brancos), não há “maus”, não há homens ou grupos em luta contra outros homens ou outros grupos. Mas todas essas características, para Hawks, eram acidentais num “western”. O fundamental era a redução à mais simples forma de drama: o poder colectivo de um grupo de homens (ou de um grupo de homens e mulheres, como em Hatari! sucede) para se inserirem num espaço hostil e – fazendo-o – dominarem os seus sentimentos mais mesquinhos, para acordarem os seus sentimentos mais nobres. Reparar-se-á, então, como em Hatari! cada caçada (todas elas significando um risco físico que só a coragem deles oculta, cada uma delas representando uma eventual aproximação à morte) é tão fundamental como cada uma das noites vividas no “bungalow” e que essa sistemática alternância (interior/exterior, momentos de pausa/momentos de acção) é a razão de ser da modificação fundamental do comportamento daqueles seis homens e daquelas duas mulheres. Como os grandes “westerns”, Hatari! é um psicodrama à escala cósmica. Havia um programa para cumprir e foi cumprido, mas ninguém voltou de África como chegou a ela.
A primeira imagem do filme é emblemática. Cinco homens estão imobilizados no meio da savana, espreitando por binóculos, como se pousassem para uma fotografia. Saberemos (depois) que essa tensão era provocada pela situação que tinham que enfrentar, “the most dangerous hunting”, a caçada ao rinoceronte. De súbito, como se um ausente realizador lhes dissesse “acção” movem-se precipitadamente para os carros e, ao som da prodigiosa música de Mancini, a aventura começa. No final, seis homens (os mesmos cinco e o francês que entretanto se lhes juntou), com uma rapariga no meio, lançam-se na mais desenfreada correria, noutra caçada, em espaço mais estranho e no encalço de mais manhoso bicho. Correm pelas ruas da capital do Tanganika a tentar caçar uma mulher. O único “bicho” que o mais exímio caçador (Wayne) quase ia deixando escapar, por uma ignorância de más experiências feita.
Não sei se Truffaut partiu desse estranho plano inicial para a sua ideia de que Hatari!, mais do que um “western”, era um “film on film”, um filme sobre uma filmagem, onde John Wayne seria o realizador. Cada noite se faz o “plano de filmagens” do dia seguinte (o quadro preto), cada noite se explica aos “actores” como devem “representar”. E cada dia se sai com uma equipa e todos os acessórios necessários, para uma representação onde a improvisação tem pouco lugar. Hawks que reclamou a interpretação de Hatari! como “western”, não rejeitou esta metáfora (“perhaps it had a lot to do with the thing”) e disse aceitar “anything that anybody says about it”. Mas não resistiu a uma piada: “The Frenchmen are so funny (...) I can’t even understand the words that they use in talking about why you arrive at such a thing”.
Como Hawks aceitava tudo, talvez aceitasse também a metáfora do filme de aviação que é aquela que Hatari! mais me convoca.
Não só porque John Wayne em Hatari! é a personagem de Hawks mais semelhante à de Cary Grant em Only Angels Have Wings (como ele, “queimado”, como ele sempre a pedir lume, como ele reagindo à “turista” intrusa); não só porque Elsa Martinelli é a personagem de Hawks mais semelhante à Jean Arthur do mesmo filme (insere-se no grupo numa cena de piano, toma as iniciativas mas exaspera-se com a permanente descrença nela e exige palavras e não actos) mas porque a construção interior/exterior é sobretudo semelhante à da base/voos desse filme e dos outros filmes de aviação de Hawks.
Só que em Hatari! – e por isso falei de “filme minimalista” – não há tragédias e tudo decorre sob o tom da comédia. Há memórias e esboços delas (o pai de Brandy morto por um rinoceronte, o acidente inicial do “índio”), mas não há consumação. E sucede até que são essas personagens marcadas (Brandy e o índio) que trazem ao filme as personagens mais redentoras. O índio aceitou (na carta) a vinda de Dallas, tomando a assinatura A.M. D’Alessandro por nome de homem e o seu acidente provoca o aparecimento de “Chips”, o francês, nessa fabulosa entrada aos murros a Kurt, e a impôr-se pelo seu tipo de sangue que salvará o índio. Brandy introduz o sexo num universo donde ele estava ausente, comunicando-o silenciosamente ao alemão (só muito mais tarde descobrimos a razão daquele longo plano fixo silencioso e inicial, enquanto Kurt lhe aperta o vestido e a cara dela se reflecte no espelho partido) ruidosamente ao francês (as cenas de ciúmes) e pelo movimento (a dança) ao fabuloso Pockets, que tão rápida como genialmente se transforma de vencido em vencedor. É ainda através dela que se faz a passagem a Dallas, na cumplicidade feminina nesse mundo de homens.
Por outro lado, contrapondo-se à mudez do grupo inicial (até o francês chegar ninguém verbalizara que Brandy se tinha tornado uma mulher, até Dallas chegar ninguém tinha contado a história do homem que não se quer queimar duas vezes), os intrusos (“Chips” e Dallas) são os que não calam. Chips exige, para ficar, que Kurt o convide e o convide como deve ser. Dallas exige que Wayne faça por ela tanto quanto – pelo menos – os elefantes fazem. Tão mal aceite nas caçadas (“a fool of myself”), obriga o grupo à caçada mais movimentada, fazendo de todos “fools of themselves”.
Hatari!, para mim. Aproximo-me do fim da folha e ainda só falei de humanos. Tanto quanto um filme sobre o grupo, tanto quanto um filme sobre a amizade e o amor, esta é a obra em que Hawks levou mais longe as suas metáforas animalísticas. Cada animal introduz uma personagem ou lhe dá grande plano. O rinoceronte é o “índio” (e é Wayne), os macacos são Buttons (e uma das mais belas sequências da obra de Hawks é aquela em que Pockets pede outra vez e outra vez a Wayne e Kruger que lhe contem a história do foguetão que ele foi o único a não ver); as girafas introduzem Dallas, além de se associarem ao chauffeur de táxi; depois das zebras, começa a dança triangular Brandy-Kurt-Chips; os búfalos são a providência de Buttons e a desgraça do alemão e do francês. Reflectindo nesse acidente, ajudado por Dallas, é que Buttons tem a fabulosa ideia de experimentar o seu poder, na queda em truque que o confirma como eleito.
Mas o único animal que não é caçado (o elefante) é guardado para a mais poderosa metáfora. Desde que Dallas se assumiu como mãe deles (fabulosa sequência da sua sagração) que os bichos com trombas não a largam mais, permitindo a Hawks as mais ousadas figurações fálicas da sua obra. E é muito mais graças aos elefantes do que graças ao grupo que o paradeiro de Dallas é descoberto. Por isso é justo que o filme termine com os elefantes no leito nupcial, antecipando-se a Wayne (uma vez mais) e desmanchando a cama como Katharine Hepburn desconjuntou o dinossauro de Bringing Up Baby. Afinal esse tão apetecido como receado lugar era apenas outro “fantasma” que culturalmente Dallas e Sean carregavam com eles. As “forças naturais” (se assim se lhes pode chamar) se encarregaram de o desfazer, fazendo-os malhar no chão, para o começo de outro filme que já não vemos.
Neste filme em que as auto-citações de Hawks se multiplicam (desde o “whisky leave me alone” de Big Sky à cara pintada de preto de Ball of Fire, passando pelas muitas que já enumerei) uma há (que já vimos em dezenas de Hawks e em dezenas de filmes) que adquire o lugar central. É a do beijo de Elsa Martinelli a John Wayne (“How do you like to kiss?”), logo repetido e seguido pela sacramental frase (em Hawks): “It’s even better when you cooperate”. O que Hawks nunca nos tinha dito ainda é que é “even better when they cooperate”. “Before you’ll go further on I must warn you are not alone in this room.”. Também não vou mais longe e, como não estou sozinho, deixo-os sem explicar quem são exactamente, os cooperantes deste filme africano. Afinal de contas, o meu resumo ao professor era muito incompleto."
JOÃO BÉNARD DA COSTA