Freebie and the Bean

Freebie and the Bean

"“‘Freebie and the Bean’, a última comédia policial do ano”, começa assim a crítica extremamente negativa de Vincent Canby (The New York Times) sobre talvez a mais descabelada produção com assinatura de Richard Rush, realizador que se especializara no cinema de ação motorizada, tendo ganho visibilidade com o bike movie Hells Angels on Wheels (1967), mas que enveredara entretanto por um retrato epocal faiscante no campus movie Getting Straight (1970), com Elliott Gould e Candice Bergen nos principais papéis. A característica mais notória do seu cinema, se não lhe está na massa do sangue, aparece-lhe logo indiciada no último nome: “rush”, quer dizer, corrida, assalto ou adrenalina. Cineasta furioso que transforma um sentimento geral de revolta, principal municiador do espírito da Nova Hollywood, numa comédia gritante que fechava o ano de 1974, após as estreias de títulos como Busting, de Peter Hyams e com Elliott Gould e Robert Blake como agentes de uma vice-squad em Los Angeles (praticamente a mesma premissa e a mesma dose de comédia e de ação violenta que encontramos em Freebie and the Bean), e The Super Cops, de Gordon Parks, o realizador de Shaft (1971) e um fotógrafo de excelência que, por sinal, assinou uma fotorreportagem impressionante sobre a atividade da polícia em Chicago, tendo relatado o seguinte: “Um detetive mostrou um toque de misericórdia durante uma invasão [ao enrolar] a marreta com uma toalha antes de atacar o suspeito com ela.”

Ora, para o crítico Vincent Canby, o caricatural Freebie and the Bean era a pior amostra do, então popular, género dos filmes com polícias ou buddy cop movies, mas podemos ou devemos vê-lo mais como obra para acabar com todas as outras. A destruição e a paródia moldam esta proposta de cinema de género, em revolta consigo mesma, sempre à beira de se lhe “saltar a tampa” e tornar-se uma... outra coisa qualquer.

O cartaz de Freebie and the Bean – com a imagem indescritível dos dois estouvados parceiros de profissão envolvidos em mais uma briga – explora bem essa ideia de um filme em revolta consigo mesmo, quer dizer, com o que se propõe ser, no final de um ano repleto de cop movies: “Acima de tudo... é uma história de amor.” E, de facto, todo o espetáculo destrutivo, em que “vai tudo abaixo”, sequência após sequência, com estrondo (ficará nos anais da história do cinema a perseguição que termina com o carro da polícia atravessado numa das paredes de um quarto onde um casal de idosos toma na cama, descansadinho da vida, a sua refeição do dia), é periférico relativamente àquilo que interessa mais: a relação amor-ódio entre dois dos atores mais carismáticos da sua geração, James Caan e Alan Arkin. Caan já era, para a maioria do público, o tempestuoso e caloroso Sonny Corleone de The Godfather (1972) e Arkin era o doidivanas Yossorian de Catch-22 (1970), tendo este último realizado, em 1971, uma sátira intitulada Little Murders, obra que converte o cenário da cidade num panorama de horrores, assédios e assaltos permanentes. A cidade era outra, porventura ainda mais propícia à melhor ação motorizada – Nova Iorque dava lugar a São Francisco, o inesquecível décor de Bullit (1968) –, mas a comédia continuava a ser selvagem, implacável e, por fim, desconfortável.

O filme foi e continua a ser alvo de críticas bastante negativas (Alan Arkin terá, entretanto, assumido o seu desagrado com este título, justificando a sua presença no projeto apenas por razões financeiras), mas também têm vingado as impressões extraordinariamente entusiastas de dois grandes realizadores americanos: Stanley Kubrick, que o considerou o melhor filme de 1974, e Quentin Tarantino, que tem Rush como uma fonte de inspiração para o seu próprio cinema, considerando Freebie and the Bean uma obra-prima dos seventies (falta construir-se pontes entre a visão sulfurosa que ambos perfilham acerca da “Babilónia Hollywood”, a partir de um filme bem curioso de Rush como é The Stunt Man [1980], relativo a um homem em fuga da polícia que encontra refúgio numa produção hollywoodesca, iniciando uma carreira, ainda mais arriscada do que a de “fora-da-lei”, como duplo ou stuntman).

O que deve ter “comovido” esses dois cineastas, tão diferentes entre si, é, parece-me, a forma como Rush se atira – se precipita, velozmente – para uma comédia que leva a sua incongruência (e reacionarismo) até ao paroxismo, tornando-se, enfim, em dinamite pronta a explodir nas próprias mãos: no fundo, o que interessa mesmo aqui é o amor demente que liga os dois buddies entre si, ambos fazendo da brutalidade e total irresponsabilidade dos seus atos uma espécie de catalisador para uma grandiosa feira popular devotada à ultraviolência e à ultradestruição. Num dos materiais promocionais, é ostentado, como se fosse uma medalha, o número de carros destruídos durante a produção do filme: exatamente 23. Mais tarde, Blues Brothers (1980), de John Landis, bateria o record, elevando o carmagedão para 104 automóveis enviados para a sucata. Qual grande máquina da destruição, até parece que quanto mais Caan e Arkin intensificam o “tango” fraterna/fratricida, mais carros são virados ao contrário e atirados ao ar.

Como algumas críticas (as mais positivas) notaram à época, Freebie and the Bean é um update relativamente às comédias burlescas do mudo, dentro do género popular dos estúdios Keystone, fazendo do “choque” entre corpos (humanos ou metálicos) a principal fonte de espetáculo cinético, mas também é preciso sublinhar que Caan e Arkin não são apenas dois corpos em movimento a brincarem aos “carrinhos de choque” no coração da grande cidade; eles são, ou revelam-se, enfim, personagens de corpo feito, cheias de defeitos, tão participantes quanto, em suma, vítimas da sua idiotia ou da idiotia geral da cidade (e da sociedade americana?). O subplot da putativa traição da mulher de Arkin é exemplar dessa tentativa (a meu ver, bem sucedida) de conferir algum “coração” ao polícia bruto e estúpido. E, de facto, Arkin é o ator ideal para gerar – mesmo que isso pareça impensável – alguma empatia por anormais como estes, quer dizer, “do tamanho do mundo”. Trata-se de uma história de amor, enfim? Sim, um tremendamente estapafúrdio bromance, cravejado de algumas tiradas ou sugestões racistas e homofóbicas, como Hollywood já não ousa hoje em dia sequer imaginar fazer. Para o bem e para o mal."

Luís Mendonça

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