Bigger Than Life

Bigger Than Life

"Ainda Nicholas Ray estava na Europa, recompondo-se da morte de James Dean (fins de 55) quando James Mason lhe mandou uma cópia do artigo “Ten Feet Tall”, publicado no suplemento do “New Yorker” a 19 de Setembro desse ano (dez dias antes da morte de Dean). Mason gostou muito dessa história verídica, sobre os efeitos dum remédio recentemente lançado no comércio: a cortisona. Pensou logo em interpretar o protagonista, em produzir, ele próprio, o filme e decidiu escolher Nicholas Ray (de quem também gostava muito) como realizador. Dois argumentistas secundários (Richard Maibaum e Cyril Hume) foram encarregados de redigir o primeiro script.

Logo começaram as dificuldades. Se Nick Ray gostou da história (há, aliás, referências no filme ao título do artigo, quando Mason, depois do primeiro internamento, regressa à escola e diz à mulher que de cada vez que entra aquela porta - se sente “ten feet tall” - ao que esta responde que, para ela, ele é sempre “ten feet tall”), não gostou nada do script que, parece, transformava o protagonista numa espécie de “médico e monstro”, “médico” de dia e “monstro” de noite, conforme a droga actuava ou não.

E respondeu que aceitava fazer o filme, desde que o script fosse todo mudado. Pediu a colaboração do seu velho amigo (do teatro e das lutas políticas), o famoso dramaturgo Clifford Odets. James Mason ficou “picado”. Nas memórias, diz: “Embora tenha a maior consideração por Odets, sabia perfeitamente o que é que Odets ia fazer. Chegava e dizia - era a mania dele - ‘a história é péssima, escolheram a pior maneira de a contar’ e começava a fazer tudo de novo. Eu não queria nada disso, queria começar a trabalhar, queria a coisa feita tal como estava”.

As coisa azedaram-se entre Mason e Ray (o primeiro veio, porém, mais tarde a admitir que, sem a ajuda de Odets, talvez o filme não tivesse a qualidade que tanto entusiasmou alguns críticos franceses).

Nick não queria histórias de médicos e de monstros. “A minha finalidade” - disse mais tarde - “não era falar da cortisona, mas da perpétua passagem do ‘remédio que pode ser um mal’ ao ‘mal que pode ser um remédio’. Aliás o tema interessava-me porque, na nossa época, havia imensa gente que acredita em curas milagrosas: esperam-nas no plano económico, político, religioso, emocional, depois de três sessões passadas deitados num divã mole; vão aos bares com a esperança de que com três copos tudo se recomponha; vão à igreja com a esperança de que, depois de ouvir três sermões, tudo volte a entrar na ordem; entram na política, convencidos que com três reuniões acabam com todos os males do mundo. Mas não é assim que as coisas se remedeiam. O meu personagem encontra um sucedâneo para a realidade quotidiana, mas esse sucedâneo leva-o a julgar-se o centro do mundo e a detestar todos os que amava e que o amam”.

Entrou nessa altura da história, um outro personagem: o crítico inglês (da “Sight and Sound”) Gavin Lambert (mais tarde, cineasta) que amava Ray e admirava Mason. Lambert serviria de intermediário entre as duas concepções e, entre eles, Odets e Ray (nenhum, creditado no genérico). O script ficou pronto no primeiro trimestre de 1956.

No Festival de Veneza desse ano (onde o filme teve a sua première europeia) a critica dividiu-se entre o delírio e a execração. Meses mais tarde, Eric Rohmer escreveu nos “Cahiers” (no 69 - Março de 1957) a critica definitiva "Ou bien... Ou bien..."

Antes de entrar “na suspensão da instância ética” que Bigger Than Life é (e na história de Abraão), acentuo, para começar, mais uma “rima” interna nos filmes de Ray. Bigger Than Life “rima” com In a Lonely Place, não só pela mesma violência explosiva e contida do protagonista, como pelo carácter confessional. Nicholas Ray - e isto não é pequena história para história tão grande - atravessou à época, uma crise grave, com uma mais acentuada dependência do álcool e das drogas. Se já se disse que In a Lonely Place era um “psicodrama” (personagens Ray - Glória Grahame), Bigger Than Life pode também ser visto por esse lado: o “remédio que pode ser um mal”, o “mal que pode ser um remédio”. James Mason é, nessa acepção, um dos seus vários e portentosos alter ego.

Mas passamos a coisa de mais peso e consequência, neste filme pasmoso e secreto, onde começamos por ser introduzidos a uma inquietação, depois a uma angústia, depois ao desespero e, por fim, à total passagem “para o lado de lá”, para o que é “bigger than life”.

No princípio era a inquietação, dada logo no primeiro plano de James Mason. Saberemos depois que a causa que os homens inventaram para ela se chama doença, mas nunca saberemos donde vem essa doença. Associada a um mal-estar social (a escola moderna e perfeita, a carreira dum professor da classe média, a família modelo, com uma mulher e um filho tão decorativos, o devoted friend Matthau, etc.), essa inquietação vai extravasar na sequência do jantar, em que o comportamento “anormal” de Mason só resulta do facto dele dizer coisas evidentes. O ataque de coração serena a inquietação dos outros, mas é bem sintomático que a mulher tenha associado o “estranho comportamento” de Mason à suspeita de infidelidade. Porque Mason já é (mau grado as aparências) um ser marginal, e porque se tem sempre que encontrar uma causa reconfortante (o móbil) para um modo de estar e ser que o não são. Mason já “pecou”. Contra “aquilo tudo”, a que chamam felicidade.

A proximidade da morte, se permite ao protagonista o envolvimento dum conforto (as assombrosas sequências no hospital), não dissolve essa inquietação. O “remédio pode ser um mal” e Mason volta a parecer “estranho”, quando se pretende comportar segundo os padrões da sociedade que é a sua (a compra dos vestidos para a mulher). Esse momento corresponde, na obra de Ray, aos “momentos perfeitos” de que tenho falado a propósito de outras obras do cineasta: ou seja aquele em que tudo parece possível, quando já tudo é impossível. Entram na loja como “família feliz”, para, a pouco e pouco (segredo da arte de Ray, mas também do genial actor que foi James Mason), se instalar a dúvida entre a prenda e o excesso, entre a reacção de classe e a reacção paranormal, entre a dúvida que a família (e os espectadores) têm face a Mason e a justificada reacção deste face à descriminação. Quando saem, já o encanto se rompeu: as empregadas protestam com o cansaço de Barbara Rush, esta já só vive na dúvida. A transição à angústia começa nessa magistral sequência.

Mas os sinais estavam dados desde o início: só depois reparamos que a lição do pai ao filho (a tortura do problema ou o problema da tortura) é análoga, em crescendo, ao plano situado no início do filme em que James Mason “normalissimamente” retém um aluno na sala de aulas durante o recreio; só depois reparamos como se desenvolve o tema do rugby: Walter Matthau, assim vestido e assim sempre amigo supostamente dedicado (muito há que se diga sobre a sua imaculada relação com Barbara Rush), a bola em cima do fogão, o presente da bola ao filho e, depois, o treino já excessivo, com o cansaço da criança e o “I hate you” final. O jogo americano, por excelência, é a transição da inquietação à angústia e da dúvida que sobre tudo paira: só depois reparamos nos posters espalhados por toda a casa, com vistas de países distantes, sinal das viagens que nunca se farão; só depois reparamos como aquele homem visto por dentro (o plano fabuloso da radioscopia) já foi virado ao contrário e não há remédio para o seu mal.

Ou há: mas o remédio é só o mal, ou o mal que se torna remédio. Todo o sentido do que significa a cortisona está contido em dois momentos inadjectiváveis: a sequência em que Mason se faz passar por um falso médico para obter uma overdose (mistura de comportamento de falsário, drogado e subversor); a sequência em que o miúdo tenta descobrir o esconderijo dos comprimidos, convencido, como toda a ordem estabelecida o convencera, de que nos remédios residia o mal do pai. Quando, no momento da descoberta, Mason surge no espelho (esse mesmo espelho que antes reflectira a sua imagem para sempre dividida) quem surge é o fantasma da culpa, o pai, em toda a força arquetípica da imagem, precisamente quando essa imagem está já destroçada pela própria angústia de Mason, atravessando as duas funções paternais: a de pai propriamente dito e a de professor.

O momento capital dessa passagem da inquietação latente, por vezes paredes meias com o estádio seguinte (plano do segundo ataque cardíaco do protagonista, com o dedo agarrado à campainha), é a sequência da inauguração da exposição de desenhos infantis, a primeira clara assunção da “anormalidade” de Mason. É sintomático que o personagem tenha nesse momento um discurso que combina Freud e Nietzsche (a famosa definição da criança como perverso polimorfo), com uma temática fascizante. Do que se trata aqui, é de fazer explodir um décor, no caso em questão o da escola exemplar para meninos exemplares, filhos de pais exemplares e autores de obras exemplares (comparar com os planos iniciais da saída da escola). Num caso como noutro, Mason põe em questão a função educadora e, por isso, denuncia o seu estado associal. O décor destrói-se, a imagem divide-se. Mais tarde, sob os tectos rasantes da casa (a espantosa concepção arquitectónica mais do que nunca devedora de Wright), a angústia estala e o espelho partido só devolve a total divisão de um homem sem imagem, no sentido em que os mitos ancestrais nos falam de um homem sem sombra (perda da identidade masculina e da identidade paternal). Essa perda, como em toda a situação de angústia, só pode ser recuperada pelo espaço uterino da casa e em oposição à figura materna (a lição de rugby, o problema, o copo que falta na garrafa de leite).

É a partir do episódio do leite (as conotações maternais e a reacção de Mason face à assustada hipocrisia da mulher) que se entra no ciclo do desespero, com a resoluta assunção da dimensão metafísica e a vertiginosa mudança na cor (os encarnados de Nicholas Ray). No momento da “morte do pai”, Mason responde com a “morte do filho” e a passagem ao tema de Abraão, “essa imagem que se torna encarnada e que tanto pode ser interpretada como sendo efectivamente a mão de Deus ou como uma hemorragia cerebral que o meu personagem teve” (Ray). E chegamos ao momento supremo, em que Mason ascende de Abraão a super-Deus. Na escada, entre os quadros das viagens, o décor perde a sua quotidianeidade, para se transformar no espaço bíblico do mundo da ascensão e do mundo da transfiguração, completamente isolado do mundo exterior. E quando a mulher lhe diz que até Deus acabou por deter a mão de Abraão, Ed responde com a frase terribilíssima: “God was wrong”.

God was wrong. Essa frase não sublinha apenas o momento da máxima paranóia do protagonista mas, no momento em que tudo fica encarnado (a audácia desse plano é incrível), sublinha também a possibilidade de toda a visão estar errada, e de ter que se passar, na arte mais dependente dela, a um curto plano de transvisão, em que não só a lógica e a lucidez são postas em causa (como notou Truffaut) como o são também a imagem e a representação, ou seja, no limite, o cinema.

E chegamos ao momento dos filmes de Ray que normalmente provoca maior perplexidade: o aparente happy end.

Nunca disso se trata, mas da suprema irrisão. Aqui, Lou Avery e o filho esperam pelo veredicto dos médicos. Há uma luz encarnada na porta (raccord com o encarnado da sequência anterior) e alguém varre a sala de espera. “Há pessoas que trabalham até terrivelmente tarde” diz o miúdo (eco dos empregos de Ed e do preço a pagar por isso). Depois vêm os médicos que perguntam a Lou se ela tem fé (o mistério de Abraão é o mistério da fé). Barbara Rush opõe à fé a que os outros se referem, a fé na família (já vimos o suficiente para vermos como tinha funcionado). E pede que a deixem - a ela e ao filho - entrar no quarto onde Mason jaz, deitado de costas e metido num colete de forças. E quando acorda, o raccord que se faz é entre dois Abraão: o que supusera ser na véspera e Lincoln big, ugly. Deus-Pai volve-se no Pai-Fundador da América e do american way of life. Sob os dois signos, se dá o gélido plano da família reunida (alone, alone), no momento da definitiva passagem para o lado onde não há reuniões possíveis.

Através dos volumes, cores, décor e do incrível aproveitamento do scope, Bigger Than Life termina na linha rasa. Como Nicholas Ray disse: “O cinema tenta agarrar, no instante, os instantes da verdade. É assim que um filme se faz. O resto é só uma questão de olhar sobre a vida e as pessoas”. Cerca de trezentos anos antes, outro autor mais consagrado tinha dito o mesmo, chamando a esse resto - silêncio. O silêncio em que termina, e para que convida, esta obra genial."

João Bénard da Costa

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